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Cultura material e o acervo têxtil do Museu da Imigração: uma breve introdução
Evelize Cristina Moreira – Pesquisadora
Eloisa Martins Galvão - Analista de Conservação
“Cor, dimensão, forma, textura, brilho, profundidade, peso… Objetos são bons para tocar, agir, olhar. Sua materialidade nos provoca os sentidos, o pensamento. O que é o objeto, o que nos faz pensar, o que nos faz ver ou apreender do outro, daquele que o produz, o usa, o transforma?” [1]
A cultura material é um tema de extrema relevância, dando destaque ao estudo dos objetos e suas relações com as práticas sociais e culturais. O olhar para a cultura material destaca a importância dos objetos no cotidiano das pessoas e como eles ajudam a construir identidades e relações sociais. A cultura material não deve ser vista apenas como um reflexo das estruturas sociais, mas como um agente ativo na formação dessas estruturas. A cultura material pode ser entendida como um documento histórico ao ser analisada como uma fonte que revela as interações entre sociedades e seus contextos materiais, fornecendo mais clareza sobre práticas sociais, valores e significados atribuídos a objetos, permitindo uma compreensão mais profunda da experiência humana. Além disso, exige uma abordagem metodológica específica que considera sua trajetória e transformação ao longo do tempo. [2]
“vale dizer que toda a produção humana, não excetuando-se as roupas, pode ser objeto de estudo e considerado material da cultura, materialidade cultural, objeto que enseja valores impossíveis de dissociar da condição humana, ainda que sejam estes, objetos não humanos ou desprovidos de uma humanidade” [3]
Este texto tem a intenção de introduzir o tema que irá permear algumas atividades do Museu da Imigração no ano de 2025. Entendendo que a instituição tem como missão promover o conhecimento e a reflexão sobre as (i)migrações humanas, a intenção é através da análise do têxtil, da moda e da indumentária, convidar o público à reflexão sobre os “fazeres de nós”, mas também a pensar os “fazeres do têxtil” através de diversas mãos, muitas vezes migrantes, que através dos tecidos estampam um tanto de sua história e trajetória.
A preservação de acervos têxteis, abrangendo suas diversas categorias, representa um desafio significativo para os Museus Históricos. Isso ocorre devido à ampla variedade de materiais, formatos e funções presentes nessa tipologia, que frequentemente estão integrados a outros suportes, como madeira e metal.
O termo têxtil é bastante amplo, abrangendo
“tecidos, produzidos em determinado período histórico e toda a enorme diversidade de objetos produzidos a partir desses tecidos. Cortinas, toalhas, indumentárias, tapetes, bandeiras, ursos de pelúcia e, igualmente, quando contenham algum elemento tecido, leques, bonecas, gravuras, jornais, pinturas – e até múmias.” [4]
Temos também outra definição complementar,
“A definição mais básica acerca do que é um têxtil, é que se trata de um material fabricado por algum tipo de processo de tecimento (...) O termo têxtil também pode ser aplicado a materiais manufaturados pelo entrelaçamento de fios, tais como objetos feitos pelo trançado, malharia e renda, bem como materiais não fiados, como feltros, nos quais as fibras ganharam coesão por tratamentos mecânicos ou processos químicos.” [5]
Dentro das pesquisas voltadas ao tema, as indumentárias tem tido destaque no acervo da instituição e nos trabalhos internos desenvolvidos pelo CPPR nos últimos anos, como restauro de três trajes cerimoniais chineses. Com uma força histórica que ecoa neste tempo, são peças que necessitam ser reveladas e trazidas à tona, em um movimento onde os emaranhados da vida têxtil se conectam através dos seus fios vitais. No total, o acervo do museu abriga 635 itens de indumentária, entre calçados, chapéus, bolsas e trajes de vestuário, 90 itens de rouparia de cama, mesa e banho e 86 bandeiras, que refletem memórias e experiências migrantes.
Do fazer ao vestir, sabemos que a indumentária ocupa um papel crucial nas interações humanas e no fazer de si no processo de identificação cultural. Também reconhecemos que há lacunas dos estudos de indumentária dentro de museus.
Mas afinal, o que é indumentária? Segundo o dicionário Houaiss, indumentária consiste na
“Arte relacionada com vestuário, história do vestuário ou de hábitos relacionados com o traje em determinadas épocas, local, cultura etc, conjunto de vestimentas usada em determinada época ou por determinado povo, classe social, profissão etc, o que uma pessoa veste; roupa, indumento, induto, vestimenta.” [6]
Miller [7], que mantém grande esforço na tarefa comparativa e um olhar continuamente analítico, nos ajuda a compreender as coisas através do têxtil e da indumentária nas sociedades modernas, lançando o olhar para Trinidad e o entendimento de que as roupas não são superficiais, mas fazem de nós o que pensamos ser.
Por meio do antropólogo, compreendemos a respeito da relação dos seres humanos com as coisas. Para o autor a função dos objetos não nos diz muito sobre a forma como as pessoas se relacionam com aquilo. A abordagem através da cultura material é prospera e ao mesmo tempo indisciplinada, sendo inclusiva e abrangente, muitas vezes proporcionando observações peculiares às pesquisas e capaz de revelar a relevância em pensar as coisas representando os outros, mas na mesma medida, fazendo as pessoas.
O Sári indiano, que pode ser um bom exemplo para o contexto, como trazido por Miller [8], além de vestir a mulher indiana e fazer dela não apenas mulher, mas também indiana, é um elemento que permeia desejos e a relação das pessoas ao redor da mulher. Para a criança, o sári funciona como a extensão do corpo da mãe, para os adultos que fazem parte do círculo social daquela mulher, tocar o pallu, ou seja, a parte que envolve o sári, implica intimidade com a proprietária da indumentária e serve inclusive para momentos de flerte entre o casal. Dessa forma, nossas vestimentas e coisas, que podem ser vistas como superficiais e estritas ao mundo material, também comunicam as nossas técnicas corporais e são um bom exemplo de como as coisas fazem as pessoas.
Como exemplo, neste ano de 2024, foi promovido pela equipe de pesquisa a atividade Encontros com Acervo com o tema “Indumentária chinesa”, onde foi possível compreender melhor o processo migratório e identitário de uma família de imigrantes chineses, contada por sua descendente, Jeanne Kuk, que através das indumentárias doadas ao Museu da Imigração, contou não apenas a história de sua família, mas também a história do seu próprio encontro com a identidade ancestral e experiências de vida que carrega.
Em um breve levantamento na coleção de História Oral do Museu da Imigração, verificamos diversos relatos de como o têxtil e a moda estão presentes no universo migrante e moldaram a história da cidade de São Paulo em finais do século XIX e ao longo do século XX.
É neste sentido que buscaremos trabalhar o acervo têxtil e comunicar ao público reflexões a partir do que já foi construído e novas perspectivas que serão exercitadas, compreendendo que o processo da pesquisa não deve focar apenas a materialidade têxtil, mas do mesmo modo, buscar outras fontes que permitam compreender o sistema no qual esse objeto está inserido, com pessoas, instituições, conhecimentos e modos de fazer.
Referências bibliográficas
[1] DIAS, Carla. A produção de si na fabricação de objetos materiais. REINHEIMER, Patrícia; SANT’ANNA, Sabrina Parracho. Manifestações artísticas e ciências sociais: reflexões sobre arte e cultura material. Rio de Janeiro: Folha Seca, p. 193, 2013.
[2] REDE, Marcelo. História a partir das coisas: tendências recentes nos estudos de cultura material. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 4, p. 265-282, 1996.
[3] DE ANDRADE, Rita Morais. Historicizar indumentária (e moda) a partir do estudo de artefatos: reflexões acerca da disseminação de práticas de pesquisa e ensino no Brasil. ModaPalavra e-periódico, n. 14, p. 75, 2014.
[4] VIANA, Fausto, Patrimônio têxtil: conservação e restauração, p.62, 2020.
[5] LEENE, Jentina Emma et al. Textile conservation. (No Title), 1972.
[6] HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.1076.
[7] MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Editora Jorge Zahar, 2013.
[8] MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Editora Jorge Zahar, 2013.