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Territórios: Ocupando o MI - Um encontro de vozes e memórias no Museu da Imigração
Museus são territórios a serem ocupados!
Gabriela dos Santos - Supervisora do Educativo
A relação entre território, memória e identidade é central para compreender o papel dos museus na sociedade contemporânea. O núcleo educativo do Museu da Imigração trabalha cotidianamente com esses conceitos, buscando entender e contemplar as histórias coletivas e individuais representadas tanto no território físico quanto no território imaginário do espaço que, no passado, foi a antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás e, hoje, é o Museu da Imigração.
A pluralidade cultural de uma cidade como São Paulo é, em parte, atribuída ao fato de que é uma cidade construída por migrantes, tanto internacionais quanto nacionais. Dados de 2021 divulgados pela Prefeitura de São Paulo revelaram que mais de 360 mil migrantes internacionais vivem documentados na capital paulista, sendo as maiores comunidades as de bolivianos, chineses, haitianos e peruanos [1]. Refletindo sobre esses dados contemporâneos e as documentações do passado, o educativo do Museu da Imigração desempenha o desafiador papel de estabelecer um diálogo com o público sobre o ontem e o hoje, desmitificando os mitos acerca das migrações e sempre reafirmando que a migração é um direito humano e que nenhum ser humano é ilegal.
Essas reflexões serviram como ponto de partida para a elaboração e execução do projeto "Territórios: Ocupando o MI", realizado no Museu da Imigração com o apoio do ProAC 33/2023, entre os meses de abril e outubro de 2024. Mais do que um conjunto de atividades, o projeto se apresentou como uma plataforma de diálogo e resistência, amplificando as vozes de comunidades migrantes historicamente sub-representadas, estereotipadas ou que tiveram suas narrativas invisibilizadas ou narradas por um olhar colonial.
A elaboração e execução do projeto consistiram em uma série de ações que exploraram a ocupação do espaço cultural como ferramenta de ressignificação. O logotipo do projeto buscou transmitir essa mensagem ao incorporar a fachada do museu dentro de um mapa em vermelho, representando o território da Zona Leste de São Paulo. Essa região, além de abrigar o Museu da Imigração, concentra grandes comunidades migrantes, como de migrantes bolivianos e migrantes haitianos. Pensando justamente nesses pontos, o projeto foi estruturado em duas frentes: ações pedagógicas, realizadas com escolas da rede estadual de ensino da Zona Leste, e programação cultural, composta por rodas de conversa, apresentações artísticas e momentos de troca entre o público, artistas e agentes culturais.
Cada encontro foi pensado para articular questões essenciais para as comunidades, que definiam os temas a serem debatidos, como vivências migratórias, preservação da memória e construção de identidades em contextos urbanos periféricos. Foram utilizadas diversas linguagens, como oficinas e saraus. O projeto teve como objetivo promover debates no território do museu, considerando tanto o território físico quanto o simbólico, conceitos que estão constantemente em disputa.
O Museu da Imigração é um dos poucos museus localizados na Zona Leste de São Paulo, mesmo estando próximo ao centro da cidade. Essa marcação geográfica é fundamental para refletirmos sobre o diálogo com as comunidades ao redor e o significado que o espaço tem para seus vizinhos. A Zona Leste é uma região que abriga um grande número de migrantes internacionais [2] e internos [3], principalmente do nordeste do Brasil, e se destaca por seu extenso território e grandes periferias. Isso nos leva a refletir sobre o papel de museus e outros espaços culturais em tais regiões.
Essas inquietações construíram o projeto "Territórios: Ocupando o MI". O sentido de "ocupar" transcende o simples ato de habitar um espaço: é reivindicar presença onde a ausência imperou, é resgatar o que foi perdido, silenciado ou esquecido. Ocupar é preencher lacunas com histórias, vozes e memórias, dando forma à resistência e à identidade. É transformar o vazio em propósito, reescrevendo narrativas e restituindo o direito de existir e pertencer.
O processo migratório influencia fortemente os artistas que vivem na diáspora. Ao chegar a um país de dimensões continentais como o Brasil, surgem reflexões sobre como suas culturas são retratadas no novo território. Isso desperta nos artistas o desejo de ocupar suas próprias histórias e contar suas narrativas, superando estereótipos alimentados por visões coloniais. A produção artística das populações migrantes em São Paulo, especialmente na região central (como o bairro da República), reflete a diversidade cultural que transforma a paisagem urbana. Muitos migrantes, principalmente angolanos, haitianos e bolivianos, usam a arte para manter vivas suas tradições e integrar-se ao novo território. Grupos de dança, música e artesanato são exemplos de como essas comunidades moldam suas identidades e desafiam preconceitos.
Nesse contexto, a programação destacou temas como a produção artística migrante em São Paulo, gênero, saúde mental e os desafios enfrentados pela comunidade LGBTQ+ migrante. Esses debates buscam desmistificar mitos sobre a migração, apresentando exemplos das realidades vividas por grupos latino-americanos, caribenhos, africanos e palestinos. Viver em diáspora transcende o espaço físico e carrega um grande potencial cultural, embora envolva complexidades. Raymond Williams, em seu ensaio de 1958, nos lembra que a cultura é "ordinária": está em todos os lugares e é expressa nas formas cotidianas de viver, criar e resistir [4]. O projeto exemplifica essa ideia ao conectar memória, arte e território em ações que desafiam estruturas tradicionais dos espaços culturais.
A ideia de território como espaço de resistência permeia também as rodas de conversa. Um dos momentos mais marcantes foi a apresentação de coletivos culturais e artísticos de periferias da Zona Leste, que compartilharam experiências de ocupação de espaços públicos e privados para preservar a memória coletiva e afirmar identidades. Essas ocupações traduzem o direito à cidade e à existência cultural, revelando as potências emergentes quando vozes periféricas são valorizadas.
O projeto também se comprometeu com a democratização do acesso à informação e à cultura, desenvolvendo materiais educativos e um vídeo promocional que facilitaram a compreensão da programação. Essas iniciativas ampliaram a divulgação e promoveram a interação significativa com públicos diversos, mesmo diante do desafio de abordar temas complexos cercados por mitos.
A experiência de desenvolver o projeto "Territórios: Ocupando o MI" reforçou o entendimento de que os museus não são apenas espaços de exposição, mas lugares vivos onde comunidades constroem narrativas e afirmam direitos. O projeto é um testemunho do potencial transformador de ações culturais conectadas às realidades locais, promovendo pertencimento e resistência por meio da arte e da memória.
Atualmente, algumas ações do projeto estão disponíveis no canal do YouTube do Museu da Imigração, e materiais educativos podem ser acessados diretamente no site oficial do museu, promovendo o engajamento contínuo com os temas abordados.
O Núcleo Educativo do Museu da Imigração agradece aos artistas Aboubacar Sidibé, Aicha Traoré, DJ Cecyza, Isa Dorda, Isabela Zaha, Lilibell Torrejon, Macarena Pitoniza, Otaldoale, Paulo Chavonga, Shirley Espejo e Sté Ilhandes.
À jornalista Karla Burgoa, ao pesquisador Caio da Silveira, aos psicólogos Henrique Galhano Balieiro e Maria Paula Botero, às produtoras culturais Estefani Moura e Ruthe Campos.
Aos grupos e coletivos culturais Centro Cultural de Guiné, Grupo da Mata, Movimento Cultural Ermelino Matarazzo, PSIMIGRA, Rede Milbi –Rede Mulheres Imigrantes Lésbicas, Bissexuais e Pansexuais e Sarau das Américas.
Por fim, às escolas E.E. Dom Miguel de Cervantes y Saavedra e E.E. Júlia Macedo Pantoja, e a todos que colaboraram com este projeto.
Referências
[1] Dia do Imigrante: cidade de SP tem mais de 360 mil estrangeiros vivendo legalmente; Disponivel em:
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/06/25/dia-do-imigrante-cidade-de-sp-tem-mai s-de-360-mil-estrangeiros-vivendo-legalmente.ghtml?utm_source=chatgpt.com
[2] Penha ou 'La Peña': Bolivianos mudam perfil de antigo bairro da zona leste de São Paulo; Disponivel em: https://agenciamural.org.br/penha-e-imigrantes-bolivianos-em-sp/
[3] MAGALHÃES, Valéria Barbosa de. Nordestinos na zona leste de São Paulo: subjetividade e redes de migrantes. Travessia : Revista do Migrante, v. 28, n. ja/ju 2015, p. 99-112, 2015 Tradução . . Acesso em: 15 dez. 2024.
[4] WILLIAMS, Raymond. Culture is Ordinary. In: WILLIAMS, Raymond. Resources of Hope: Culture, Democracy, Socialism. London: Verso, 1989. p. 3-18.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2000.
RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Ch'ixinakax utxiwa: Una Reflexión sobre Práticas e Discursos Descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010.