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Brasileiros na Hospedaria: A década de 1930 - Um Período de Transformações
Na tarde do dia 09 de novembro de 1936, a Hospedaria de Imigrantes do Brás foi, de certa forma, reinaugurada. Depois de um ano de reformas, o edifício recebeu uma fachada remodelada, novas camas para os dormitórios, instalações higiênicas, cozinha, mesas de mármore no refeitório, aparelhos recém-adquiridos para desinfecção de pessoas e bagagens, além da criação de um posto médico e a construção de um novo hospital. Estiveram presentes na cerimônia diversos jornalistas e autoridades públicas paulistas, o que indica a importância conferida ao fato.[1]
As pessoas que iriam usufruir dessa Hospedaria mais moderna eram, em sua maioria, os migrantes nacionais. A década de 1930 representou a confirmação de uma mudança nas características dos fluxos migratórios para São Paulo; pela primeira vez, as entradas de brasileiros provenientes de outros estados, especialmente do Nordeste, superaram as de estrangeiros. Durante esse período, a imprensa começou, inclusive, a registrar as chegadas de navios em Santos que traziam trabalhadores nacionais. Essas notas, geralmente, apresentavam o título "Imigrantes Nordestinos para a lavoura paulista". Vejamos alguns exemplos.
Em fevereiro de 1936, procedente de Belém e escalas, o vapor Rodrigues Alves aportou em Santos, com 137 migrantes.[2] Em abril de 1936, foi a vez dos vapores Itapagé, também procedente de Belém e escalas, com 273 passageiros[3], depois, o Comandante Ripper, com 169 sergipanos[4] e, novamente, o Itapagé, com mais 59 cearenses[5]. Em 1937, os desembarques se intensificaram e os números de migrantes cresceram nos navios, como no caso do Comandante Alcídio que, em fevereiro, trouxe 311 passageiros.[6] É interessante observar as rotas das embarcações, que partiam comumente do porto de Belém, no Pará, e, depois, paravam em portos dos estados nordestinos. Além disso, em algumas ocasiões, era necessária a troca do vapor no porto do Rio de Janeiro. Outra consideração importante diz respeito ao fato de que a viagem por mar não era a única maneira de chegar em São Paulo, existiam rotas terrestres.
Os migrantes citados acima foram todos direcionados para a Hospedaria de Imigrantes do Brás. É preciso destacar que a notícia sobre a reinauguração da Hospedaria menciona o trabalho de membros da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo em reafirmar a importância do edifício na acolhida de trabalhadores. Isso porque, no início da década de 1930, a Hospedaria exerceu outras funções e os migrantes que chegavam em solo paulista ficavam desassistidos. Em janeiro de 1934, um informe no jornal Correio Paulistano, apontado como "Lamentável", evidencia essa situação:
"É sabido o que se passa, ali mesmo, à rua Brigadeiro Tobias: 400 e tantos retirantes do Nordeste detidos pela polícia!
Espetáculo degradante. Essa gente desceu o São Francisco. Tomou o trem em Pirapora. No meio dela, vieram alguns variolosos. Aqui chegando, o governo isola esses homens em pleno coração da cidade, num velho pardieiro, sem higiene. É verdadeiramente lamentável!
Não dispõe, então, o governo de meios para acolher os trabalhadores que nos procuram?
Antigamente, possuía a Secretaria de Agricultura, na Mooca, uma excelente Hospedaria de Imigrantes, que, depois de 24 de outubro, foi tudo, até manicômio. Hoje, é quartel. Está entregue ao Exército.
São Paulo em outros tempos nunca presenciou fatos como esse.
Vários jornais já registraram, revoltados, esses tristes acontecimentos, inclusive alguns insuspeitos ao governismo.
A Carta Magna limitou a imigração a 2% sobre os estrangeiros aqui fixados. Os outubristas acabaram com as magníficas instalações da Mooca. Hoje, o que se vê é isso.
E São Paulo não está ameaçado de apanhar uma epidemia de varíola?
Já pensaram nisso as autoridades sanitárias?" [7]
O texto acima evoca diversas questões. A princípio, bastante significativa é a menção aos outros usos da Hospedaria em determinados períodos da primeira metade da década de 1930, a falta de um local adequado para acolher migrantes que chegavam na capital paulista e a percepção de que o edifício da Hospedaria estava sendo mal utilizado. Pode-se imaginar, posteriormente, uma pressão por parte da imprensa e da classe política sobre esse fato. Disso resultaram as reformas na Hospedaria em 1936.
Entretanto, esse novo período durou pouco tempo. Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a Hospedaria de Imigrante do Brás foi cedida aos militares e transformada em Escola Técnica da Aviação. Alguns anos depois do fim da guerra, a aeronáutica deixou o prédio, que voltou a ser um espaço de acolhida. Porém, as instalações da década de 1930 já não eram tão atuais e novas reformas eram necessárias, ainda mais levando em consideração o aumento exponencial das migrações nacionais e internacionais em direção a São Paulo a partir da década de 1950.
É, nesse período, com a intensificação das chegadas de migrantes brasileiros em solo paulista, que alguns estereótipos, especialmente sobre nordestinos, começam a ser mais recorrentes. Alguns elementos que ajudaram na construção desses discursos preconceituosos aparecem no artigo do Correio Paulistano, como a relação de retirantes com doenças contagiosas e a falta de higiene, por exemplo. Mas isso é tema para outras publicações.
Referências bibliográficas
[1] Correio Paulistano, 10.11.1936.
[2] Idem, 02.02.1936.
[3] Idem, 20.04.1936.
[4] Idem, 03.04.1936.
[5] Idem, 17.04.1936
[6] Idem, 20.02.1937.
[7] Correio Paulistano, 10.01.1934.
Foto da chamada: Hospedaria de Imigrantes do Brás antes da reforma iniciada em 1935.