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Colecionando Histórias Orais: Conselheiros Extraordinários Imigrantes nos Conselhos Participativos Municipais
Na semana passada, o texto da série "Colecionando Histórias Orais" abordou o "Mulheres em movimento: migração e mobilização feminina na cidade de São Paulo". Hoje, falaremos sobre outro projeto que também surgiu com a proposta de discutir formas de organização coletiva de migrantes, mas, desta vez, em sua esfera de atuação junto ao poder público: "Conselheiros Extraordinários Imigrantes nos Conselhos Participativos Municipais". Esse projeto iniciou em 2014 e durou até 2016. Nesse período, foram realizadas quinze entrevistas com migrantes de diversas nacionalidades que atuaram junto aos Conselhos Participativos Municipais.
O tópico da participação política vem sendo trabalhado de forma a protagonizar uma série de ações da atual gestão do Museu da Imigração, desde a reabertura da instituição em 2014. Compreendendo esse movimento como um fenômeno crescente da experiência migrante pela perspectiva do coletivo, consideramos fundamental sua representação também no acervo do Museu, por meio da História Oral.
Embora ainda restem muitos desafios quando falamos em direitos dos migrantes, a última década foi marcada por inúmeras iniciativas e importantes conquistas – e foi em meio a esse momento efervescente que o projeto em torno dos Conselheiros foi concebido. Em 2009, por exemplo, houve a quarta anistia de imigrantes em situação irregular (em 1981, 1988 e 1998 presenciamos processo similar), que possibilitou a regularização migratória de mais 40 mil pessoas. Nesse mesmo ano, começou a vigorar o Acordo de Livre Residência MERCOSUL, que hoje beneficia e permite a residência documentada de migrantes vindos da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai, assim como de brasileiros residentes nesses países.
Finalmente, após mais de três décadas do Estatuto do Estrangeiro, de 1980, promulgado em pleno período ditatorial no Brasil, aprovou-se em 2017 uma nova Lei de Migração. No momento em que a equipe no Museu da Imigração elaborava o projeto Conselheiros Extraordinários Imigrantes nos Conselhos Participativos Municipais, em 2014, a lei encontrava-se em pleno debate, a partir de um alvissareiro anteprojeto idealizado por uma comissão de especialistas.
Ainda naquele ano, concretizou-se a 1ᵃ Conferência Nacional sobre Migração e Refúgio (Comigrar) que teve como um de seus principais objetivos promover a integração de migrantes no Brasil. Na sequência, o Estado de São Paulo anunciou a criação de um Centro Integrado de Cidadania do Imigrante (CIC) e a prefeitura de São Paulo noticiou a inauguração do Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes (CRAI).
Nesse mesmo período, migrantes internacionais residentes na cidade de São Paulo puderam, de forma inédita, concorrer às cadeiras de Conselheiros Extraordinários nos Conselhos Participativos Municipais. Esses Conselhos compõem uma estrutura de atuação da sociedade civil que tem como finalidade ampliar a participação popular e tornar mais transparente o trabalho nas subprefeituras. Na ocasião, 21 subprefeituras foram consideradas aptas a eleger um conselheiro migrante, atendendo à determinação de que sua população local deveria conter ao menos 0,5% de estrangeiros. Em um segundo momento, posterior à elaboração do projeto e realização da maioria das entrevistas, a cadeira foi aberta em todas as subprefeituras.[1]
Como função principal, tais conselheiros teriam o exercício do controle social nas subprefeituras, podendo ainda sugerir ações e políticas públicas a serem desenvolvidas. Ainda que na prática o poder dos conselheiros tenha se expressado de forma consultiva – e não deliberativa, como foi almejado –, tal atuação se mostrou como mais um passo e uma importante ferramenta de participação política dos migrantes no debate sobre conquista de direitos no município em que residem.[2] Mais de 1.700 eleitores migrantes participaram das eleições e vinte conselheiros migrantes foram empossados no início de 2014. As entrevistas iniciaram-se em abril desse mesmo ano, evidenciando a presença do Museu da Imigração no cenário das migrações contemporâneas e suas dinâmicas específicas.
Segundo Werner Regenthal, essa teria sido uma primeira brecha para a entrada efetiva dos migrantes no cenário político:
"Eu me candidatei pensando em representar comunidade de estrangeiros só em segundo, terceiro plano; porque eu achei que era meu direito, minha chance, uma abertura para me candidatar ao cargo político que me foi negado há trinta anos que estou aqui. Então, é a primeira abertura, a primeira brecha. Então, eu sempre briguei, lutei e torci para que tivesse e agora que tem... É quase a minha obrigação moral entrar aí."[3]
Clara Politi também afirma que a participação da sociedade civil na política não é vista com naturalidade pelos brasileiros, sendo, portanto, uma luta que não deve ser interrompida. Nesse sentido, a prática dos Conselhos é mais uma tentativa de encontrar os possíveis caminhos para a participação política dos imigrantes:
"Sobre o Conselho, a gente está procurando diferentes caminhos. Eu acho... Eu não tenho a bola de cristal, eu não sei quais seriam os caminhos, a gente está fazendo os caminhos, sabe, tentando. Erro e acerto, né? Porque não tem um caminho que a gente pode falar ‘bom, por aqui tem que ir’, temos que ir tomando os caminhos que, sabe, o dia a dia vai impondo."[4]
Ainda sobre a participação dos migrantes na sociedade, Victor Gonzales afirma que se trata de uma responsabilidade de todos nós. A respeito do cargo de Conselheiro Extraordinário, completa:
"Era a possibilidade do imigrante, de a gente falar, de trazer à tona a problemática do imigrante que, até então, não era vista. A cidade tem um monte de problemas e o problema do imigrante estava escondido embaixo do tapete. Então, esse momento era uma possibilidade de poder mostrar isso."[5]
A maioria dos entrevistados entende o lugar do migrante nos Conselhos Municipais como um pontapé inicial, ainda que se tenha muito trabalho pela frente para garantir uma participação mais plena. Ives Berger vê a interdição ao voto como um ponto crucial:
"Para ser bem sincero as conquistas são ainda pequenas, né? Pelo que a gente pretende. Na verdade, o que eu estava conversando com um professor (agora sou professor da FAAP) é que, enquanto a gente não tiver o voto, na verdade, a gente não existe. Porque infelizmente na política é assim, né? São os votos que contam. Então, as conquistas mínimas que a gente tem são, na verdade, ainda pequenas, né?"[6]
Apesar de todas as dificuldades, a questão da visibilidade é também um ponto recorrente na fala dos entrevistados. Pela primeira vez, foi possível visibilizar as demandas, as lutas e as ações pela própria voz dos migrantes, sem necessitar de interlocutores. Nas palavras de Luís Vasquez:
"Nós estamos lutando aqui em São Paulo, os imigrantes, por uma comunidade mais próspera, uma comunidade mais justa, com pleno exercício da cidadania, com todos os direitos. Não queremos mais nem menos, queremos ter igualdade de condições como todo e qualquer brasileiro que mora e nasceu aqui. Igualdade na questão do voto, igualdade para sobreviver, para fazer nossas empresas, gerar nossos empregos, ou procurar um emprego, queremos simplesmente igualdade. (...) Nós da comunidade boliviana somos uma comunidade em que podemos falar por nós mesmos e queremos ser donos do nosso próprio destino. E essa é nossa luta."[7]
Mônica Ulo afirma a importância da realização desse trabalho, ainda que não seja remunerado, pensando no bem do próximo.
"Todo mundo achava que isso ia ser uma coisa que não ia dar certo, mas está dando certo. A participação das pessoas e sobretudo as demandas, que você está sabendo a realidade da subprefeitura, quanto orçamento tem, quanto dinheiro tem para poder fazer uma obra. (...) Os Conselheiros estão trabalhando e eu gosto muito de lo que estão fazendo – e estão levando muito a sério."[8]
A última entrevista realizada para este projeto se deu em junho de 2016. A entrevistada foi Camila Baraldi, brasileira, que ocupava na época o cargo de Coordenadora de Políticas para Imigrantes da Prefeitura de São Paulo. Ainda que fora do escopo inicial de entrevistas com ocupantes do cargo de conselheiros imigrantes, sua fala foi bastante elucidativa e conferiu um rico fechamento ao ciclo de entrevistas que marcou esse momento de mobilização política na cidade de São Paulo. Para Camila, foi um momento em que frutificaram diversas pautas:
"(...) acesso ao trabalho, trabalho de melhor qualidade, moradia, saúde, esses outros direitos em que, muitas vezes, os imigrantes acabam enfrentando as mesmas dificuldades que os brasileiros. Então, acho que a gente avançou bastante."[9]
Sobre a questão dos Conselhos Participativos, afirma a importância do empoderamento do migrante nesse processo:
"Um pequeno passo foi dado com a criação da cadeira extraordinária para imigrantes nos Conselhos Participativos. O retorno que se teve dessa decisão foi muito gratificante porque a eleição, na verdade, para imigrantes, foi realizada no início de 2014 e foi um momento muito simbólico, de festa, de alegria para os imigrantes, que falavam: ‘Pela primeira vez eu posso votar desde que eu estou aqui no Brasil’. Alguns imigrantes aqui no Brasil há décadas e outros recém-chegados. Então, foi um momento de encontro também entre aquelas diversas gerações de imigrantes. (...) O que nós notamos, sobretudo entre os imigrantes, é esse empoderamento, essa consolidação de lideranças, essa aproximação também dos imigrantes com o Estado brasileiro, compreender também como as coisas funcionam dentro do estado. Participar, ter voz, se interessar também não só pelas questões da sua comunidade, mas também de todos os imigrantes. Então, uma ação que teve muitos frutos e que nós consideramos uma das principais ações dessa nossa gestão."[10]
Ainda que o projeto "Conselheiros Extraordinários Imigrantes nos Conselhos Participativos Municipais" tenha sido encerrado, poderemos futuramente retomar essas discussões. O tema da participação política dos migrantes na cidade de São Paulo continua tendo grande importância em nossas ações que envolvem as migrações contemporâneas. Que sigamos juntos em mais essa luta.
Referências bibliográficas
[1] Atualmente existe também o Conselho Municipal de Migrantes, que foi instaurado a partir da lei municipal de 2016 e continua bastante ativo: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/direitos_humanos/imigrantes_e_trabalho_decente/conselho_municipal_de_imigrantes/index.php.
[2] Depois dessa fase inicial, todo o Conselho Participativo Municipal sofreu alterações: em 2017, o número de conselheiros passou de 1170 para 569; no caso das cadeiras extraordinárias para imigrantes, não houve redução, mas todo o cenário evidencia um processo de desvalorização dos espaços de participação social que acaba gerando impacto também na participação migrante. BREITENVIESER, Camila; TUBINI, Juliana Moreira. "Nada sobre mim, sem mim: espaços de participação social na política para imigrantes de São Paulo" In: XVII Semana de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp/Fclar: Disputas hegemônicas e processos emancipatórios no Brasil contemporâneo. Anais de evento. São Paulo, 2018.
[3] Werner Regenthal. Entrevista de História Oral, 2015. Conselheiro Extraordinário Imigrante no Conselho Participativo Municipal do Butantã.
[4] Clara Politi. Entrevista de História Oral, 2015. Conselheira Extraordinário Imigrante no Conselho Participativo Municipal de Pinheiros.
[5] Victor Gonzales. Entrevista de História Oral, 2014. Conselheiro Extraordinário Imigrante no Conselho Participativo Municipal de Santo Amaro.
[6] Ives Berger. Entrevista de História Oral, 2015. Conselheiro Extraordinário Imigrante no Conselho Participativo Municipal da Lapa.
[7] Luis Vasquez. Entrevista de História Oral, 2014. Conselheiro Extraordinário Imigrante no Conselho Participativo Municipal da Mooca.
[8] Monica Ulo. Entrevista de História Oral, 2014. Conselheira Extraordinário Imigrante no Conselho Participativo Municipal de Ermelino Mattarazzo.
[9] Camila Baraldi. Entrevista de História Oral, 2016.
[10] Idem.
Foto da chamada: Monica Ulo em entrevista para a coleção de História Oral do Museu da Imigração.