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Colecionando Histórias Orais: Conte sua História
No texto introdutório desta série comentamos sobre a formação da coleção de História Oral do Museu da Imigração a partir do acervo de entrevistas coletadas pela antiga gestão da instituição: quase quinhentos depoimentos de migrantes internacionais e seus descendentes, alguns dos quais passaram pela antiga Hospedaria do Brás. Ao analisar esse rico acervo, consideramos que essas comunidades já estariam bastante representadas e, por isso, voltamos grande parte de nossos esforços para entrevistar outros grupos mais ausentes na coleção, como migrantes contemporâneos e funcionários da Hospedaria, bem como migrantes nacionais.
No entanto, não deixamos de levar em conta a existência de uma demanda de nosso público em continuar participando de nossas coleções. Assim sendo, consideramos nosso dever seguir abrindo esse espaço e funcionando como um local de recepção para a grande variedade de histórias relacionadas ao processo migratório em São Paulo. Foi com base nessa premissa que surgiu o projeto "Conte sua História", com o objetivo de abraçar as histórias que chegam até nós, muitas vezes de forma espontânea, tendo em vista a importância desses estudos e dos registros dessas experiências sob a perspectiva dos próprios migrantes.
Esta iniciativa não pretende abarcar um nicho específico da história da migração brasileira, mas dar voz àqueles que buscam contar suas histórias e ser ouvidos. A partir de um roteiro de perguntas preestabelecido, buscamos compreender a percepção dessas pessoas e/ou de suas famílias sobre suas trajetórias: o país de origem, a infância, a vida adulta e profissional, com atenção à questão das trocas culturais e da adaptação ao local de destino.
Por fim, debruçamo-nos sobre a relação dessas pessoas com a memória, a seleção de determinadas lembranças, a reconstrução dessas recordações ao longo do tempo e as formas de transmissão das memórias em círculos sociais e familiares. Poderá ser abordada a presença do espaço do Museu entre as lembranças do entrevistado, com o objetivo de compreender qual a importância conferida por cada um deles ao Museu e por que consideram relevante que suas histórias estejam sendo registradas, preservadas e apropriadas nesse espaço específico.
Atualmente, o projeto conta com duas entrevistas: Maria Lango, da Hungria (na época ainda parte da chamada Iugoslávia) e Keiichi Inokawa, do Japão.
Maria Lango, aos 98 anos, nos relatou nessa entrevista parte da trajetória de sua família, cobrindo desde a intrincada história do leste Europeu no início do século XX até a chegada à cidade São Paulo, com seus processos de adaptação e busca por uma vida melhor. Entre suas lembranças, acontecimentos ligados à sua mãe foram bastante rememorados, bem como algumas dificuldades enfrentadas pela família, como a morte do seu pai e uma enchente que tomou a casa onde viviam, poucos anos após a sua chegada:
"A minha mãe era uma pessoa muito instruída, que ela se criou desde os 12 anos lá na casa dos condes, dos barões. É barão? Conde! Gróf. Gróf é “conde”. E ela era muito, assim, lutadora, respeitadora, e ela só ensinava para a gente: ‘Quando você falar com alguém, olha nos olhos da pessoa, nunca mente, nunca, porque, se você fizer qualquer coisa, se não for hoje, vai ser amanhã, você vai ser descoberto’. Então ela era muito correta. E depois que veio a enchente, em 1927, eles perderam tudo. Aí eles tinham uns vizinhos espanhóis que nos acolheram mais de 4 meses, até que a água baixou, tudo. Enquanto isso, meu pai e os amigos dele foram fazendo pilares de pedra, pedregulho, cimento, bem alto, 3 metros de altura."[1]
Outras lembranças bastante presentes em sua narrativa dizem respeito à escola e à infância, passada em grande parte da Zona Leste paulista. Maria também contou como conheceu o marido, com quem foi casada por muitas décadas até seu falecimento. Ela nos mostrou ainda um livro de memórias que escreveu, incentivada pela professora de um curso para a terceira idade que frequentava (a mesma professora que nos procurou para registrar a história de Maria!):
"Como eu comecei a escrever? Quando a minha mãe contava as historinhas, aquele tempo era papel branco que embrulhava o pão. Então eu rasgava um pedaço de papel e rabiscava em cima. Rascunhava o que eu lembrava na hora, né. E foi muitos anos guardando, muitos anos guardando. E teve uma época lá que a bendita professora falou para mim ‘Vamos escrever um livro’. E agora quer fazer mais um, depois desse. Acho que já tenho. E 3 anos nós levamos para fazer. Então aqui tem um monte de fotos da nossa vida, dos meus netos, meus bisnetos, das filhas..."[2]
A relação de Maria com suas lembranças é bastante elucidativa em sua sensibilidade; no final da entrevista, ela fala sobre a importância das memórias em sua vida e como são sempre diversas, cada vez que as revisitamos:
"E foi muito bom vir aqui, porque o que a minha mãe contava é uma coisa... é uma grande verdade. Porque isso a mamãe pegou quando teve a enchente. Então levou documento, então ela dizia: ‘aquilo que eu contar e guardar na memória, nada vai levar embora! Nem enchente, nem deslizamento, nada. Você vai sempre lembrar daquilo que eu estou contando’. Sempre diferente, claro. Ninguém conta duas vezes igual, não é? A gente conta diferente. E os meus amigos, na família, conhecidos, gostam muito de me... porque é só sentar, eu já abro a boca. E eles, aí ela fala ‘Mamãe, a senhora enche os outros falando!’ Eles gostam, eles dão atenção, eu falo! Se eu vejo que não dão atenção, eu fico quieta!" [3]
A segunda entrevista, realizada com Keiichi Inokawa, aconteceu por iniciativa da família, que nos procurou com a intenção de realizar um registro de suas histórias. Nascido no Japão em abril de 1926, migrou junto com os familiares para o Brasil em 1933 em um navio cargueiro chamado Arabe Amaru. Na trajetória migratória, ficaram hospedados na Hospedaria de Kobe, no Japão. A família comprou um terreno antes de chegar ao Brasil e por aqui viveu em diferentes cidades do interior de São Paulo – Bastos, Rinópolis e Tupã –, trabalhando com agricultura até se estabelecerem na capital. Suas lembranças sobre o trajeto foram bem marcantes na entrevista:
"Bom, de lembrança lá no porto onde tinha o alojamento para imigrantes, porque estava com meus primos, todos juntos, então sozinho a gente não saía. Agora, ele muitas vezes ele me chamava: ‘vamos dar um passeio na cidade’, eu lembro de passear na cidade de Kobe e tinha muita casa de tipo, de estrangeiro, porque lá tem muito estrangeiro, em cidade de porto. Isso já era uma coisa assim, novidade, e outra vez ia no porto, mas pouco tempo, não sei quantos meses a gente ficou lá em Kobe porque não tinha navio. No fim, sabe, em vez de vir em navio de passageiro, viemos em cargueiro. (...) Arabe Amaru, era navio cargueiro. Então, cada porto, depois que saiu de Kobe, o primeiro porto foi Hong Kong, ficou a noite inteira lá carregando e descarregando. Depois de Hong Kong, foi pra Singapura e ali também ficou um dia. (...) Quando desceram no porto, não lembro bem, como sou preguiçoso, eu deitava lá em cima comendo sanduíche. Depois de São Paulo, pegamos trem de Sorocabana até lá em Presidente Prudente, chegamos lá à noite e na mesma noite veio um caminhão vazio, pegou toda a família, botou no caminhão como carga e foi até Bastos. Era uma noite que eu lembro de muitas árvores em cima, passavam os galhos da árvore no meio da noite, dava até medo. Depois eu dormi, chegamos em Bastos quase de madrugada, isso não lembro bem."[4]
Keiichi também nos contou sobre costumes de sua família, seu aprendizado da língua portuguesa na escola da colônia japonesa, música e alimentação:
"Arroz e feijão a gente teve que acostumar. E carne. Agora, verdura, essas coisas, como estava no sítio, a gente plantava e comia: rabanete, batata, todas essas coisas. Até a fruta, abacaxi, laranja, mas laranja também meus pais não conheciam, cada um comprou um pé de laranja lá em Bastos, comprou, plantou e aí começou a nascer fruta, da minha casa tinha um pé que não era nem mexerica, nem laranja, nem tangerina nem nada, um tipo de, como chama? Uma casca grossa e meio grande e doce, como chama aquela laranja lá? Zabon? Eu falava zabon. (...) E outra família Takahashi não conhecia, plantou a tangerina... não, mexerica! Porque mexerica não é muito gostoso. Então, quando dá o tempo de maio, que dá laranja, a gente ia lá buscar. E outro, Tsugamoto, não tinha laranja, ele plantou manga, mangueira. Um pé de manga, foi a primeira vez que comi manga, não gostei muito. E outro, Hamamoto, a laranja que comprou pegou um pé e plantou. Lá falava zabon, um tipo grande assim, casca grossa e o miolo é meio... sei lá, não é macia, é meio amarga, sabe? Então o único que tinha era Takahashi, todo mundo ia pegar lá, enganado... acontecia cada uma lá em Bastos!"[5]
Keiichi relata ainda sua mudança do interior para a capital, por conta de uma transferência na firma onde trabalhava. Segundo ele, foi um pouco difícil localizar um lugar bom para morar, mas aos poucos foi encontrando seu espaço em São Paulo. Hoje, gosta bastante da cidade. No final da entrevista, perguntamos se ele teria vontade de voltar ao Japão; de forma bastante pragmática, responde:
"Não tem dinheiro, como que vai passear? Está louco, é um dinheirão! (...) Nem para Hokkaido tem que ir lá, não conheço ninguém, nem está um parente lá."[6]
Essa é uma realidade bastante comum. Muitos migrantes que chegaram ao Brasil há décadas nunca mais retornaram aos seus países de origem. Por essa perspectiva, suas lembranças e memórias constituem um tesouro ainda mais precioso a ser preservado.
Referências bibliográficas
[1] Maria Lango. Entrevista de História Oral. Acervo Museu da Imigração, 2017.
[2] Idem.
[3] Idem
[4] Keiichi Inokawa. Entrevista de História Oral. Acervo Museu da Imigração, 2019.
[5] Idem.
[6] Idem.