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Colecionando Histórias Orais: Hospedaria de Histórias
Nas últimas semanas, os textos da série "Colecionando Histórias Orais" exploraram dois projetos que se relacionam com as temáticas da migração contemporânea e da luta dos migrantes por representatividade política e social; foram eles: "Mulheres em movimento: migração e mobilização feminina na cidade de São Paulo" e "Conselheiros Extraordinários Imigrantes nos Conselhos Participativos Municipais". Hoje mudaremos um pouco o foco temático de nossa análise para abordar um projeto que possui, por enquanto, somente duas entrevistas, mas que é de extrema importância para o entendimento da história do Museu da Imigração. Trata-se do "Hospedaria de Histórias", criado em 2016 com o objetivo de explorar a história da antiga Hospedaria do Brás, edifício que atualmente sedia o Museu, por meio de entrevistas com antigos funcionários da instituição.
Para sua elaboração, as entrevistas com ex-funcionários da Hospedaria de Imigrantes (e, mais especificamente, do Departamento de Migrantes) foram inseridas em um objetivo mais amplo, que é compreender melhor as diversas facetas relacionadas à história da migração no Brasil, principalmente no estado de São Paulo, utilizando os registros de história oral. Tendo em vista o prédio histórico em que o Museu da Imigração está localizado, é incontornável a tarefa de conhecer as variadas funções exercidas pela Hospedaria, as trajetórias daqueles que por ela passaram e seu cotidiano, bem como as permanências e mudanças no decorrer do funcionamento do edifício.
Com o desenvolvimento de nossas pesquisas, inclui-se no projeto a possibilidade de entrevistar também migrantes (em geral, nacionais) que estiveram na Hospedaria. Por meio da História Oral, conversar com funcionários e, também, com migrantes que se relacionaram diretamente com a Hospedaria seria uma forma de entender melhor um tema que possui poucos registros. Os últimos anos de funcionamento dessa instituição são aqueles que mais precisam ser estudados, levando-se em conta que muitos documentos que existem sobre a entrada de migrantes no complexo ainda não estão digitalizados e seguem, portanto, inacessíveis.
Essa última fase de funcionamento da Hospedaria caracterizou-se por uma presença massiva de migrantes nacionais, dos quais nos faltam ainda referências, principalmente sobre sua relação com a instituição – como era a relação com os outros migrantes (brasileiros e estrangeiros) e com os funcionários? Nos últimos tempos, o Núcleo de Pesquisa do Museu da Imigração tem se debruçado com mais atenção sobre esse tema. O resultado da pesquisa pode ser acompanhado na nova série "Brasileiros na Hospedaria", cujo desenvolvimento estamos apresentando em textos de periodicidade semanal, também aqui no Blog do Centro de Preservação, Pesquisa e Referência do Museu.
Como mencionamos, o projeto "Hospedaria de Histórias" conta, até o presente momento, com apenas duas entrevistas. A primeira delas foi realizada com o ex-funcionário Ari Dotti; a segunda, com a migrante mineira Maria Rita Sodré. Apesar da importância do assunto, não é tarefa fácil localizar indivíduos que passaram pela Hospedaria, como se pode imaginar. A iniciativa segue em andamento e a temática é complementada com outras fontes de pesquisa. Nas entrevistas, seguimos um roteiro de perguntas que vai desde a origem e trajetória do entrevistado até questões mais pontuais sobre o funcionamento da Hospedaria, abordando também a relação subjetiva do entrevistado com o edifício.
No caso de Maria Rita Sodré, sua passagem pela Hospedaria se deu quando tinha apenas 7 ou 8 anos, por volta de 1950, junto com os pais e mais sete irmãos. Ela conta que nasceu em uma fazenda em Minas Gerais, perto de Diamantina:
"Nós saímos de lá e fomos para Curvelo. De Curvelo, nós viemos para cá. Em Curvelo todo mundo trabalhava – estudava e trabalhava –, mas lá tinha muito poucos serviços. Daí meu pai quis vir para cá. (...) A viagem foi boa, um tanto cansativa porque viemos de trem, mas aí nós chegamos à estação do Brás."[1]
Maria Rita conta que, ao descer do trem, muitas pessoas foram juntas, a pé, até as dependências da Hospedaria. Ela explica que a maioria seria encaminhada para o interior, mas, como uma de suas irmãs encontrava-se doente, eles acabaram ficando mais tempo na Hospedaria. Maria Rita se lembra do momento da chegada:
"Levaram-nos para nossos quartos, que eu lembre, aí tinha os banheiros para tomarmos banho e depois nós jantamos. (...) Nós jantamos e daí cada um foi para o seu quarto. Nós já tínhamos tomado banho, estávamos todos limpinhos, e fomos para os quartos; era um quarto que nem esse que vi aí em cima [na exposição]. Com as camas todas uma em cima da outra, e eu não entendia nada porque nunca tinha dormido em beliche!"[2]
Maria Rita dá alguns detalhes sobre a organização do edifício, como a separação dos dormitórios femininos e masculinos, e conta ainda sobre a área externa e os serviços médicos que recebeu:
"Era lá embaixo, tinha o pátio, o hospital do meio, tinha barzinho... Tinha um médico, eu fui ao médico porque meu nariz começou a sair sangue, e meu pai me levou. Daí o médico me deu a injeção, me colocou para repousar na cama e falou para meu pai que era sol demais na cabeça. Nunca mais aconteceu. (...) Eu sei também que tomamos vacina aqui. Só que eu não lembro... acho que foi a varíola, aquela que pega e deixa ferida no braço. Tomei mas não lembro, não."[3]
Devido à doença de sua irmã, a família permaneceu mais de um mês na Hospedaria – o tipo de acontecimento do qual não possuímos muitos registros – e só saiu de lá quando um senhor que seu pai conhecera conseguiu arrumar empregos para alguns dos membros da família, incluindo Maria Rita, que trabalhou numa papelaria. Certamente suas lembranças são bastante vivas devido à extensão de tempo que passou na Hospedaria. Ela conta também que andavam muito pelo pátio, ficavam soltos por ali, e se lembra do refeitório e da comida que era servida:
"Enchia esse refeitório, enchia! Depois saía de lá, a gente ia do café da manhã para fazer o que queria: brincar, deitar, dormir, levantar, tomar banho... fazia o que queria. Tinha comida boa. Assim, de café da manhã eu gostava muito porque davam banana, mortadela e pão. E eu como era criança gostava muito dessas coisas. (...) O almoço era muito bom. Eu sei que a comida era boa, daqui. Não era ruim, não."
No final da entrevista, Maria Rita comenta da emoção de visitar o Museu da Imigração:
"Eu gostei muito daqui, gostei... não vim antes, acho, porque não tinha tempo ou ninguém para me trazer; eu não sabia, né? Não conhecia São Paulo, então eu gostei, fiquei muito emocionada. Quando eu vi as camas me deu vontade de chorar, eu fiquei muito emocionada. Quando eu vi o refeitório, quando me lembrei do meu pai, dos meus irmãos, todos ali... Porque já foram todos, só ficamos eu e minha irmã. Então eu nunca esqueci daqui. (...) Faz parte da minha vida, um pouco. Porque não fui maltratada, não vi ninguém maltratando minha família, era todo mundo... sei lá, eu me sentia bem aqui! Tinha liberdade para brincar, lugar para brincar e ninguém brigava, entendeu? Eu gostei muito daqui, falo a verdade."[4]

A segunda entrevista que realizamos para este projeto, com ex-funcionário Ari Dotti, traz outra perspectiva sobre a Hospedaria. Dotti conta que trabalhou na instituição de 1974 até 1980:
"Lá eu fui diretor do Departamento de Amparo e Integração Social (DAIS), que abrangia o serviço de reabilitação social, que recebia os migrantes brasileiros e tinha o pavilhão dos imigrantes estrangeiros no local. Mas nós cuidávamos apenas dos imigrantes estrangeiros, do seu bem-estar, porque toda a outra parte da documentação era feita pela Policia Federal. Agora, dos migrantes brasileiros o Serviço de Reabilitação Social recebia famílias e orientava essas famílias através das assistentes sociais ou para emprego ou para procurar parentes e dava repouso e alimentação para todos."[5]
Ele apresentou aspectos do funcionamento interno dos serviços da Secretaria da Promoção Social, como era feita a triagem, por exemplo, no caso dos migrantes brasileiros:
"No final de 68, o governo Abreu Sodré, através de decreto, criou a Secretaria da Promoção Social, que procurava, procuraria fazer o atendimento social de toda população do estado de São Paulo. E aí foram criados o Departamento de Amparo e Integração Social, o Departamento de Atendimento e Triagem e a CETREN, que era a Central de Triagem e Encaminhamento, ficava no bairro do Glicério. Todas as pessoas que eram recolhidas na época na rua ou que chegavam em São Paulo e não tinham um destino certo eram encaminhadas para a CETREN. Essa Central de Triagem e Encaminhamento fazia o cadastro de todos e as famílias com as crianças eram encaminhadas para o Serviço de Reabilitação Social do DAIS. (...) Essa triagem era a primeira que era feita quando eles ingressaram na Secretaria da Promoção Social."[6]
Ari conta que no caso dos migrantes internacionais, a triagem já era feita pela Polícia Federal e os funcionários da Hospedaria só realizavam o cadastramento das pessoas. Segundo ele, nesse período não havia muito contato entre os migrantes internos e internacionais, somente no momento da chegada. Até mesmo as refeições eram realizadas em locais separados.
"Os migrantes brasileiros, principalmente do Norte e Nordeste, ficavam numa área do Serviço de Reabilitação Social com pátio, refeitório, dormitório, banheiros que era mais ou menos atrás do lado de dentro do prédio grande da imigração, onde era o DAIS. E os imigrantes ficavam no pavilhão no fundo, também lá com pátio, cozinha, banheiro, dormitório para eles."[7]
Sobre o cotidiano dos migrantes, afirma:
"Eles eram livres. Tinha mais ou menos horário do café, era como um hotel, tinha horário do café, horário do almoço, horário do lanche e a janta. E horário para chegar à noite. (...) Desde que documentado e tal, se não houvesse nenhuma restrição da documentação e a gente seria avisado pela Polícia Federal, era livre, saía, ia procurar emprego e ia tratar de assuntos de seu interesse."[8]
Ari descreve também uma série de serviços que eram oferecidos aos migrantes, desde atendimento por assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras e padres. No final da entrevista, comenta sobre a função que lá desempenhou:
"Olha, a gente sempre procurou fazer o que era melhor para o assistido migrante ou para o imigrante estrangeiro. Porque isso era e será sempre uma função do servidor público. O próprio nome já diz. Eu era um servidor público. Eu tenho que atender bem as pessoas que procuram o meu serviço. Eu não posso atender mal porque eu estou lá para facilitar, ajudar quem está precisando de alguma coisa. Porque quem não está precisando não vai lá, fica em casa, vai passear, vai para a balada hoje. Mas quem está lá é porque precisa de alguma coisa. Então como servidor público eu tinha que ajudar a pessoa no que fosse possível. Nessa época nem férias às vezes a gente tirava porque não havia gente para substituir e tinha coisas que não podia deixar, tinha andamento que você tinha que acompanhar, emprego, documentação, saúde."[9]
Embora as duas entrevistas aqui apresentadas tratem de períodos diferentes do funcionamento da Hospedaria – cerca 1950 e 1975, respectivamente –, podemos ver alguns pontos de contato nas falas de Ari e Maria Rita – por exemplo, a questão da liberdade que se tinha para circular pelo espaço. No entanto, os depoimentos são bastante diferentes em matéria de memória: Maria Rita teve uma experiência infantil, suas lembranças são marcadas pelas emoções do momento da migração, a situação da família, entre outros, enquanto Ari traz dados mais burocráticos sobre os serviços prestados pelo órgão do governo. Um fato curioso liga Ari à Hospedaria de Imigrantes, por outra perspectiva além de seu histórico profissional: seu bisavô italiano, Celeste Dotti, passou pelo edifício no final do século XIX. Mais uma evidência do quanto a migração está presente, das mais diversas formas, na história paulista.
Referências bibliográficas
[1] Maria Rita Sodré. Entrevista de História Oral, 2017. Acervo Museu da Imigração.
[2] Idem.
[3] Idem.
[4] Idem.
[5] Ari Dotti. Entrevista de História Oral, 2016. Acervo Museu da Imigração.
[6] Idem.
[7] Idem.
[8] Idem.
[9] Idem.
Foto da chamada: Ari Dotti em entrevista para a coleção de História Oral do Museu da Imigração.