Blog
Compartilhe
Afinal, o que é o brasileiro? - Ius sanguinis e Ius soli
O Museu da Imigração é muito procurado por pessoas que têm interesse em descobrir mais informações e registros acerca de antepassados migrantes. Desde a transformação do edifício da Hospedaria de Imigrantes do Brás em um espaço de memória das migrações em São Paulo[1], a instituição, apoiada principalmente pela documentação relativa à história da Hospedaria e pelas matrículas dos migrantes acolhidos, se esforça para auxiliar visitantes em busca de documentos familiares e esclarecer eventuais dúvidas sobre o tema.
A pesquisa pela história de ascendentes migrantes é estimulada pela oportunidade que muitos brasileiros têm em poder reconhecer outra cidadania. Em 2019, o último relatório do Centro de Preservação, Pesquisa e Referência (CPPR) do Museu, relativo às visitas presenciais, identificou que cerca de 80% do público interessado na pesquisa de registros de estrangeiros tinha como principal motivação a obtenção da cidadania europeia, especialmente a italiana, portuguesa e espanhola (respectivamente, 70%, 12% e 10%). O surgimento da pandemia do novo Coronavírus e o encerramento temporário das atividades presenciais no MI impediu o desenvolvimento de estatísticas semelhantes para 2020 e 2021. No entanto, as mensagens recebidas virtualmente pela equipe de pesquisa revelam que a razão principal pela qual as pessoas buscam documentos de migrantes permanece a mesma. Ainda que não tenhamos números precisos, milhares de brasileiros continuam a almejar o reconhecimento de mais uma cidadania.
Naturalmente, essas pessoas passam a se relacionar mais intimamente com os principais debates, questões e reflexões inerentes ao tema das cidadanias, tais como direitos e deveres, pré-requisitos, interpretações legislativas, entre outros. Dentre esses pontos, surgem alguns termos mais recorrentes, como o ius sanguinis e o ius soli. Essas duas expressões em latim significam, respectivamente, direito de sangue e direito de solo e podem ser entendidas como critérios estabelecidos por diferentes países para a definição de uma nacionalidade primária[2].
Alguns exemplos tornam mais simples a compreensão desses critérios. Partimos de um caso muito comum no Museu: um ou uma descendente de um migrante italiano que deseja informações sobre o antepassado para poder reconhecer a cidadania italiana. Vamos supor que a pessoa nasceu na cidade de São Paulo em 1991, sendo que o migrante tem como origem Verona, em 1891, e desembarcou no Brasil com apenas cinco anos. Ou seja, em 1896. Um século separa os nascimentos dos dois parentes distantes. Desde a chegada da família no Brasil (1896), todos os descendentes do migrante nasceram e viveram por aqui.
Logicamente, muitas pessoas podem perguntar a razão pela qual esse indivíduo, nascido em São Paulo, pode reconhecer a cidadania italiana. Considerando que os pais, avós e bisavós dele são brasileiros, mas um trisavô nasceu na Itália e migrou para cá ainda criança, por que esse paulistano pode ser também italiano? A resposta está no ius sanguinis. Para a Itália, o(a) filho(a) de um cidadão italiano é igualmente italiano. A cidadania é herdada e passa de geração para geração, ou seja, é um direito de sangue. A região/o local de nascimento não é fundamental para a transmissão da cidadania. O que conta, essencialmente, é ser filho de um cidadão italiano.
Exemplo de transmissão da cidadania italiana ius sanguinis (em vermelho)
Assim, Giuseppe Rossi, nascido em Verona, transmitiu a cidadania para o seu filho João, nascido no Brasil. Que a compartilhou com o seu filho Paulo, também com origem no Brasil. Que repassou para o seu filho Antonio, brasileiro. Que, por sua vez, a concedeu para o seu filho Raphael, novamente com nascimento em terras brasileiras[3].
Pensemos, agora, na cidadania brasileira, cujo critério predominante para a definição da nacionalidade é o ius soli. Segundo a Constituição de 1988[4]:
Art. 12. São brasileiros:
I - natos:
a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país.
Isso significa que se um casal de estrangeiros (turistas, migrantes, refugiados, apátridas, entre outros) tiver um filho em território pertencente ao Brasil, a criança será cidadã brasileira. Ou seja, ainda que alguém não possua pais ou qualquer ancestral brasileiro na sua árvore genealógica, essa pessoa é brasileira se nasceu em solo brasileiro (direito de solo).
Evidentemente, existem outros critérios, pormenores e circunstâncias que podem influenciar na atribuição da cidadania brasileira e italiana, citadas como exemplo. Não é o objetivo do texto examinar, detalhadamente, essas questões. O propósito é apresentar os principais fundamentos que orientam o tema da nacionalidade nesses dois países (ius soli e ius sanguinis).
Uma dúvida que pode surgir é a razão pela qual um Estado tende a preferir um ou outro critério para atribuir a nacionalidade. Uma das respostas possíveis está na história das migrações. Segundo Suellen A. Bonani:
"Os países historicamente considerados de imigração, como é o caso do Brasil e a maioria dos países americanos, optam maioritariamente pelo critério do ius soli pela necessidade de fazer integrar no seu Estado os descendentes dos seus imigrantes. Os países europeus, pelo contrário, são Estados historicamente de emigração e adotam, em sua maioria, o critério do ius sanguinis, uma vez que a necessidade aqui é proteger os descendentes dos seus emigrantes nacionais que nasceram fora do país de origem dos seus pais."[5]
Em resumo, temos, entre os critérios estabelecidos pelos países para definirem quem é seu cidadão, se é considerado o ius sanguinis (direito de sangue) ou o ius soli (direito de solo). Esse último prevalece nas nações americanas, entre elas o Brasil, sendo o vínculo territorial, portanto, um fator fundamental. Essencialmente, quem nasce no Brasil é brasileiro. Essa afirmação, inclusive, pode ser sugerida como uma resposta para a pergunta título dessa série. Afinal, o que é o brasileiro? O brasileiro é aquele que nasce no Brasil. Eis uma saída para o nosso questionamento. Mas será que a solução é tão simples?
Vamos refletir novamente sobre as cidadanias italiana e a brasileira. No exemplo acima, citamos o caso de uma pessoa, nascida em São Paulo, cujo trisavô é italiano. Em razão do ius sanguinis, ela tem o direito de reconhecer a cidadania italiana. Imaginemos que isso acontece e ela decide morar na Itália, tentando uma nova vida no país de origem do seu ancestral. No entanto, é importante recordar que essa pessoa nasceu e cresceu no Brasil, bem como os seus pais, avós e bisavós. A pergunta que fica é: a sociedade italiana irá reconhecê-la como italiana?
Se buscarmos nas redes sociais ou mesmo amparados por relatos ouvidos no Museu, podemos verificar que muitos ítalo-brasileiros sofreram com atitudes preconceituosas quando foram viver na Itália após o reconhecimento da cidadania (evidentemente, os casos não se aplicam somente à Itália). Não falar o idioma da mesma forma que um nativo, apresentar sotaque e diferenças de comportamentos em determinados contextos. Isso pode acarretar em um não reconhecimento desse italiano, nascido no Brasil, como "verdadeiro" italiano por parte da sociedade italiana (nascida na Itália).
E no Brasil? Filhos ou descendentes de migrantes estrangeiros, nascidos no Brasil, são reconhecidos como brasileiros? Não no sentido de serem legalmente cidadãos brasileiros, mas, sim, admitidos como brasileiros pela sociedade? Podemos citar, como exemplo, descendentes de migrantes japoneses. Vamos supor que um casal de migrantes proveniente do Japão desembarcou no Brasil em 1908. Desde então, eles viveram no Brasil. Tiveram filhos, netos, bisnetos, entre outros, que nasceram e cresceram por aqui. Dependendo do fenótipo desses descendentes, ainda que as suas famílias estejam em terras brasileiras há duas, três ou quatro gerações, não é comum eles serem chamados de "japoneses" ou existirem percepções estereotipadas sobre eles?
Afinal, o que nos torna brasileiros a ponto de nos reconhecermos como brasileiros? É o idioma? A religião? Um certo comportamento? Ou alguns costumes? Quais são as características dos brasileiros? Qual é o brasileiro típico? Existe um caráter nacional?
Essas perguntas transformam o tema da série em questão em algo um pouco mais complexo. Em outros artigos, iremos refletir melhor sobre elas e tentar trazer mais aspectos voltados à discussão da construção dos Estados-Nação e a ideia de caráter nacional.
Mas, no próximo texto, continuaremos a abordar alguns verbetes importantes para uma melhor compreensão do tema desenvolvido nessa proposta.
Referências
[1] Em 1982, o edifício da Hospedaria de Imigrantes do Brás foi tombado pelo Condephaat. Já em 1986, foi criado o Centro Histórico do Imigrante.
[2] CARTAXO, A. Marina. A Nacionalidade Revisitada: o direito fundamental à nacionalidade e temas correlatos. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional, Universidade de Fortaleza, 2010. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp133097.pdf.
[3] Um outro ponto que poderíamos refletir diz respeito à cidadania e às questões de gênero. Em alguns países, se a sua ascendência é apenas via materna ou se há alguma mulher, em determinadas condições, como ascendente direta, podem existir impedimentos e/ou obstáculos ao reconhecimento da cidadania.
[4] Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
[5] BONANI, A. Suellen. Nacionalidade Originária e por Naturalização: Uma perspectiva luso-brasileira. Dissertação apresentada na Faculdade de Direito Nova de Lisboa, 2014. Disponível em: https://run.unl.pt/bitstream/10362/17210/1/Bonani_2014.pdf.
Foto chamada: registra a mãe que deu a luz à primeira criança nascida na Fazenda Capivari.