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As luzes e sombras da diáspora japonesa pelo olhar de duas artistas
Evelize Moreira – Analista de Pesquisa
“foi então que percebi: a verdadeira beleza da laca japonesa só se revela plenamente na penumbra” (Junichiro Tanizaki)
Qual é o limite entre ser e não ser?
No dia 23 de janeiro de 2024, inaugurou no Museu da Imigração a exposição “Sombras – Luzes: Identidade na Diáspora Japonesa no Brasil”, das artistas Cristina Suzuki e Cláudia Kiatake, com curadoria de Allan Yzumizawa, historiador da arte.
Através da exposição, que tem grande influência da obra de Junichiro Tanizaki, “Em louvor da Sombra” [1], as artistas nos conduzem não apenas ao mergulho em seus universos identitários, mas principalmente a reflexões e questionamentos acerca das identidades japonesas estereotipadas, assim como sobre a oposição entre sagrado e profano, luzes, sombras e ancestralidade. Na obra de Tanizaki, o autor traz a reverência à sombra e toda a potencialidade contida nos elementos a partir da penumbra. Laca japonesa, ouro, cômodos de uma casa, todos se revelam de forma superior mediante a sombra. Nessa linha, a identidade japonesa é guiada pela dualidade das luzes e das sombras, desde a arquitetura até a arte, e reflete também como a sombra diferencia a cultura oriental da ocidental, sobretudo examinando o período Edo, momento em que o Japão se fechou político-economicamente.
Não por acaso, a fonte de água que se encontra no centro do jardim do Museu da Imigração, em que Cláudia, Cristina e Allan fizeram uma intervenção compondo a exposição, tem chamado atenção devido à sua sombra.
Cada uma das artistas traz em suas obras o próprio estilo. Cristina Suzuki, através dos carimbos, vídeos e impressões, nos provoca questionamentos sobre as culpas que carregamos, as coisas que aceitamos e acabam se fixando em nossas peles, os eixos do mundo e paradigmas das pessoas de famílias migrantes, a miscigenação não esperada de alguém que descende de japoneses, o consumo e a origem dos itens que adquirimos, o incômodo ao nos depararmos com o pedido do outro e evitação dos olhares, a desautorização de uma mulher considerada japonesa em exercer a sua brasilidade. Cristina desafia com provocações, usa da performance corporal para compor sua arte e fazer os estereótipos sambarem sob seus pés. A artista de alguma forma vai de encontro com o que chamamos de “minoria modelo”.
Minoria modelo, faz referência aos estereótipos positivos relacionados à comunidade do leste asiático nos Estados Unidos durante a década de 1960, quando após anos de estigmatização, passaram a ser considerados pelo ponto de vista norte-americano como um grupo dócil. A minoria modelo significou a figura do imigrante racializado que não se revoltaria e seria obediente. Esse estereótipo consiste em uma imagem de pessoas amarelas como trabalhadoras, sérias e intelectuais, perdurando ainda nos dias atuais. Embora estas sejam qualidades geralmente admiráveis, há indivíduos do grupo que não atendem a essa expectativa e se sentem pressionados socialmente “chegando ao ponto de certas pessoas viverem depressão, baixa autoestima ou outros distúrbios decorrentes dessa situação” [2], o que contribui para a exclusão de diferenças sociais e culturais entre japoneses.
Na mesma linha enfrentadora caminha a arte de Cláudia Kiatake, que em meio a crises de identidade e reconexão com sua identidade okinawana, além da brasileira, nos apresenta suas reflexões intensas. A artista percorre caminhos profundos e usa a arte contemporânea aliada a elementos das culturas do Japão e de Okinawa.
Fios de seda de quimono, cera de vela, papel washi, nanquim, linhas de algodão, servem de ferramentas para inquietações, afetações e reflexões em uma viagem para dentro de nós mesmos. Os desafios das preconcepções são mais sutis, elementos que se movem com afeto, um portal que dialoga e conecta o profano ao sagrado, as linhas que fazem os remendos diários, o nanquim que nos lembra que, assim como a luz, a sombra é parte de nós e do todo, o carimbo Hanko que traduz a crise de identidade.
A respeito da última obra citada, gostaria de me delongar brevemente. A obra denominada “Crise de Identidade” traz um carimbo impresso em tecido voil. Carimbos, chamados de Hanko, são usados no Japão como meio de garantia de autenticidade de documentos, substituindo a necessidade de uma assinatura. Os carimbos geralmente se dividem entre aqueles que necessitam de registros em instâncias oficiais, como bancos e prefeituras, por exemplo, e outros que são usados sem essa necessidade. De modo geral, não é possível “existir” no Japão sem um carimbo. O objeto veio para o Japão da China, durante a dinastia Han, mas era utilizado apenas por autoridades oficiais do governo, levando mil anos até o uso pela população geral. O tamanho do carimbo é determinado pela complexidade dos caracteres e é feito a partir do sobrenome da pessoa, uma vez que é comum no Japão se utilizar o sobrenome antes do nome. À marca que é feita com o Hanko é dado o nome de Inkan.
Os objetos importam. É interessante pensar como objetos são capazes de determinar ações de pessoas e neste caso, conferir a certificação de uma identidade. Como pensa o antropólogo Daniel Miller [3], os objetos para além da dimensão simbólica, tem a capacidade de construir sujeitos.
Artistas geralmente usam o Hanko quadrado, e não por acaso, o carimbo da obra diz respeito ao sobrenome de Claudia, conferindo sua existência como brasileira de descendência okinawana. Das 47 províncias do Japão, Okinawa é a que foi mais expressiva no número de migrantes que vieram para São Paulo durante o auge da migração, somando 12% no total. De 794 imigrantes chegados no navio Kasato Maru em 1908, para trabalharem nas lavouras de café do interior paulista, 325 eram okinawanos. Como muitos processos migratórios onde certas identidades étnicas são apagadas, com os okinawanos no Brasil não foi diferente. Quando pensamos na migração japonesa para o Brasil, raramente lembramos ou sabemos dos conflitos históricos entre japoneses e os grupos nativos de Okinawa. O tema merece um artigo apenas tratando do assunto, mas neste texto é importante entender que a luta okinawana é presente e que a cultura denominada japonesa no Brasil, tem muito da herança de Okinawa, inclusive sendo o país com mais falantes da língua uchinaaguchi no mundo.
Diante de todos esses elementos, a resposta para a pergunta que inicia esse texto é que provavelmente não há limite. Nas palavras de Junichiro Tanizaki, é “um mundo indistinto em que claro e escuro não têm limites definidos”. O ser e o não ser se traduzem no jogo das sombras e das luzes, é um convite a celebração das possibilidades e não dicotomias humanas e à história iniciada em 1908 na Hospedaria de Imigrantes do Brás, agora ao próprio modo das artistas, em uma dinâmica de identidades que misturam diversas vivências, comportamentos e visões de mundo, unindo as sacralidades e profanidades entranhadas nas ancestralidades.
A exposição ficará em exibição até o dia 05 de maio de 2024, no Museu da Imigração.
Prepara-se para se emocionar!
Crédito da imagem: Antônio Magalhães - Analista de Comunicação e Desenvolvimento Institucional do Museu da Imigração.
REFERÊNCIAS:
[1] TANIZAKI, Junichiro. Em louvor da Sombra. Tradução do Japonês: Leiko Gotoda. Companhia das Letras, São Paulo. (Obra original de 1933.)
[2] SANTOS, Caynnã de Camargo; ACEVEDO, Claudia Rosa. A minoria modelo: uma análise das representações de indivíduos orientais em propagandas no Brasil. Rev. psicol. polít., São Paulo, v. 13, n. 27, p. 281-300, ago. 2013.
[3] MILLER, Daniel. Trecos, Troços e coisas: Estudos antropológicos sobre a cultura material. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.