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As histórias invisibilizadas e o novo projeto de coleta de História Oral "Migrações internas"
Por Thiago Haruo Santos
Desde a reabertura em 2014, o Museu da Imigração vem trabalhando na ampliação do seu conceito gerador, buscando abarcar as migrações enquanto experiência humana, de contextos e sujeitos variados. Para isso, nesses últimos anos, desenvolveu novos projetos de pesquisa e mediação, enfocando, principalmente, as migrações contemporâneas. As frentes de trabalho que se abriram e se desenvolveram no MI, nesses últimos anos, então, tinham como motivação, principalmente, esse esforço para criar narrativas que fossem para além daquele fenômeno circunscrito ao que se conheceu como "Grande Imigração"[1].
Antes mesmo da existência da Hospedaria de Imigrantes do Brás, no século XIX, já é possível encontrar indícios da presença de migrantes vindos de outros estados do território brasileiro. Segundo um informe publicado pelo Departamento de Imigração e Colonização do Estado de São Paulo[2], entre 1827 e 1959, entraram no estado de São Paulo, pelo porto de Santos ou por via férrea e rodoviária, 5.262.700 migrantes nacionais e internacionais. Desses, 2.421.817 constam como "brasileiros", representando 41% das entradas ocorridas naqueles 132 anos, taxa bastante alta para um período que inclui aquele que é lembrado, muitas vezes, apenas pelo intenso fluxo de migrantes internacionais (1890 - 1920).
Assim, conforme pesquisas realizadas desde o Memorial do Imigrante vêm apontando[3], a história da Hospedaria de Imigrantes do Brás é também das brasileiras e dos brasileiros. Das mais de 3,5 milhões de pessoas que passaram pelo equipamento de acolhida nos 91 anos de funcionamento, apesar de não podermos precisar o número, estimamos que, pelo menos, metade teve como nacionalidade a brasileira. Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Alagoas e Ceará são os estados de origem mais expressivos entre essa população.
Desde o ponto de vista do estado de São Paulo, e mais especificamente da Hospedaria, é possível traçar um quadro bastante geral sobre alguns momentos dessa migração. Embora desde os primeiros anos da Hospedaria encontremos registros da presença de migrantes internos, é apenas a partir do final da década de 1920, quando a migração internacional se torna menos intensa e ocorre uma mudança na política de migração, que esse fenômeno se tornará massivo a nível nacional. O fim do subsídio para a migração internacional em 1927, portanto, marca uma inflexão das políticas voltadas à atração de migrantes dentro do território nacional para São Paulo. Em decretos e na própria constituição[4], podemos encontrar elementos que apontam para o discurso nacionalista predominante naquele período, tendências inflamadas pelo próprio cenário internacional da Primeira Guerra Mundial e do entre guerras.
É nesse momento que se desenvolve uma política de incentivo dessas migrações, tendo, por exemplo, em 1935, o governo paulista celebrado contratos com empresas particulares para promover a vinda de migrantes internos para o Estado, e, em 1939, criado a Inspetoria dos Trabalhadores Migrantes (ITM), no âmbito da Secretaria Estadual da Agricultura, responsável por recolher, encaminhar e introduzir trabalhadores migrantes. Essas ações estabelecem um novo marco institucional, refletido na predominância desse grupo na Hospedaria:
Entre 1935 e 1939, por exemplo, dos 285.304 trabalhadores e trabalhadoras que entraram na Hospedaria, nada menos que 96, 3%, (ou seja, 274.579) eram brasileiros (dos quais 130.063 vindos da Bahia e 68131 de Minas Gerais), restando apenas 10725 estrangeiros (3,7% do total)[5].
Em 1943, a Hospedaria interrompeu as suas atividades de acolhida para servir como escola técnica da aeronáutica. Em 1952, é retomada a política de atração e acolhida de migrantes nacionais e internacionais, com o edifício voltando a executar a função para a qual tinha sido construído. Abriu-se, assim, um novo período de políticas de atração de trabalhadores de outros estados à São Paulo, que será paulatinamente enfraquecido ao longo das décadas de 1960 e 1970. Um marco institucional importante nesse sentido é a passagem do próprio complexo de instituições abrigado no espaço da antiga Hospedaria, da Secretaria dos Negócios da Agricultura, alocação originária desde a sua edificação, para a Secretaria de Promoção Social, criada em 1967. Em 1971, absorvida por essa nova secretaria, a antiga Hospedaria passa a abrigar o Departamento de Amparo e Integração Social (DAIS). Segundo o decreto que a instituiu[6], o DAIS era responsável
(...) pelo atendimento e assistência social aos trabalhadores migrantes e imigrantes e à população socialmente vulnerável, por meio das atividades de recepção, auxílio-transporte, acolhimento, atendimento médico, orientação psicossocial, capacitação profissional encaminhamento para postos de trabalho.
Já no texto do decreto, fica evidenciada a introdução de noções como "população socialmente vulnerável" do campo da assistência social. Menos vinculado a um plano ou segmento da economia ("Negócios da Agricultura"), a antiga Hospedaria se volta ao trabalho junto às populações marginalizadas, que ganhavam, cada vez mais, atenção nas grandes cidades. Essa interpretação é corroborada pelos relatos dos antigos funcionários da Hospedaria, que concederam entrevistas para o Memorial do Imigrante, que compõem o acervo de História Oral.
O tema, portanto, não é novo. Em relação à produção museológica, o feito mais importante dos últimos anos no Museu da Imigração foi a realização da exposição virtual Brasileiros na Hospedaria[7]. A mostra se propôs a introduzir o tema da presença de brasileiros na hospedaria, indo além da ideia de migrações internas. Dando uma mostra dos diferentes usos que teve a Hospedaria – em algumas ocasiões servindo de hospital e, em outras, de presídio, de escola e de abrigo para populações vulnerabilizadas –, a produção conseguiu sintetizar uma série de reflexões trazidas na série de publicações "Brasileiros na Hospedaria"[8] do Blog do CPPR. A exposição virtual pôde demostrar, a partir de documentações como registros de matrícula, acervo iconográfico e mapas, como existe um campo inexplorado na história da Hospedaria, que diz respeito a um grupo que foi majoritário, pelo menos, em termos numéricos.
A sub-representação desse grupo se reflete na atual coleção de história oral: dentre as 579 entrevistas catalogadas, pudemos identificar apenas 16 (2%) de migrantes internos ou de antigos funcionários que tratam da presença desse grupo social na Hospedaria.
Na exposição de longa duração Migrar: experiências, memórias e identidades, as migrações internas são mencionadas apenas em um pequeno painel no módulo 4, indicando o aumento dessa população dentre a população migrante a partir da década de 1930.
Considerando a proposta da atual gestão do Museu da Imigração de requalificação dessa exposição, de modo a trazer temas e abordagens ainda incipientes, a equipe de pesquisa vem desenvolvendo, desde o ano de 2022, o projeto de pesquisa "Migrações internas", que busca coletar novas entrevistas com vistas a entender a experiência de pessoas migrantes de nacionalidade brasileira, originárias de outros Estados ou municípios que não São Paulo.
No ano passado, realizamos duas entrevistas que puderam iluminar essa experiência a partir de perspectivas bastante diferentes entre si. Essas entrevistas, catalogadas no portal BNWEB e transcritas, podem ser acessadas no portal em formato de PDF[8].
A primeira entrevistada foi Ligia Maria Calvi, brasileira e psicóloga, que trabalhou como estagiária, na década de 1980, na Secretaria de Promoção Social, que funcionou no edifício que abrigou a Hospedaria de Imigrantes. A sua entrevista apontou para uma série de questões vinculadas ao serviço voltado à atenção à saúde das pessoas em situação de vulnerabilidade, um importante indicador para refletir sobre a possível perspectiva de assistência social predominante nos últimos anos de funcionamento da Hospedaria.
O segundo entrevistado foi Chico Denis. Chico nasceu em 1990, na cidade de Quixelô, no estado do Ceará. Membro fundador do Memorial da Migração Nordestina da Cidade de São Paulo, defende a importância de trabalhar a memória das migrações nordestinas em São Paulo, considerando a pluralidade das histórias que a compõe. Relatando uma trajetória de passagens de estudo pela Universidade Federal da Integração Latino Americana (UNILA), no estado do Paraná, e do título de mestre na Universidade de São Paulo (USP), o entrevistado nos apresenta o seu interesse pela política, pelos movimentos sociais e pela América-latina como um campo de estudos e de atuação. Enquanto agente da memória, propõe uma perspectiva para pensar as migrações nordestinas para São Paulo na conjunção de dois momentos: as migrações históricas, majoritariamente motivadas pela busca de oportunidades de trabalho, e outra, mais recente, vinculada aos estudos.
Ambas as entrevistas trazem não só novas informações para reavaliar a história das migrações no Brasil, a partir da experiência dos migrantes internos, mas, desde questões e perspectivas mais atuais, recoloca a urgência de aprofundar tais pesquisas. O MI seguirá, portanto, nos próximos anos com o projeto de coleta de História Oral "Migrações internas", buscando contribuir cada vez mais para a construção de uma memória das migrações que não apague a presença dessa importante parcela da população em movimento.
Referências
[1] Denominação pela qual é referida os diversos movimentos imigratórios ocorridos entre o final do século XIX e inícios do XX, desde os países do continente europeu.
[2] O órgão existiu até 1967, quando foi absorvido pela Secretaria de Promoção Social criada naquele ano.
[3] PAIVA, Odair da Cruz. Hospedaria de imigrantes de São Paulo. Odair da Cruz Paiva, Soraya Moura. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
[4] Decreto n. 19482 de 12 de dezembro de 1930: "Limita a entrada, no território nacional, de passageiros estrangeiros de terceira classe, dispõe sobre a localização e amparo de trabalhadores nacionais, e dá outras providências". Constituição de 1930: "Art. 121. § 4º - O trabalho agrícola será objeto de regulamentação especial, em que se atenderá, quanto possível, ao disposto neste artigo. Procurar-se-á fixar o homem no campo, cuidar da sua educação rural, e assegurar ao trabalhador nacional a preferência na colonização e aproveitamento das terras públicas.".
[5] FONTES, Paulo. Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel paulista (1945-66). FGV Editora, 2008.
[6] Decreto nº 52.701, de 11 de março de 1971.
[7] https://artsandculture.google.com/story/TAXhBAvS0cwmLg.
[8] "Brasileiros na Hospedaria: Uma maioria negligenciada" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-uma-maioria-negligenciada); "Brasileiros na Hospedaria: A década de 1930 - Um Período de Transformações" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-a-decada-de-1930-um-periodo-de-transformacoes); "Brasileiros na Hospedaria: Os sem-matrícula" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-os-sem-matricula); "Brasileiros na Hospedaria: A viagem ao Eldorado" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-a-viagem-ao-eldorado); "Brasileiros na Hospedaria: Percursos, ocupação e trabalho" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-percursos-ocupacao-e-trabalho); "Brasileiros na Hospedaria: Ocupação, trabalho e gênero" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-ocupacao-trabalho-e-genero); "Brasileiros na Hospedaria: Onde o frio é maior" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-onde-o-frio-e-maior); "Brasileiros na Hospedaria: A Lei de Cotas e a Lei dos 2/3 - novo projeto de identidade nacional" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-a-lei-de-cotas-e-a-lei-dos-23-novo-projeto-de-identidade-nacional); "Brasileiros na Hospedaria: Uma casa temporária" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-uma-casa-temporaria); "Brasileiros na Hospedaria: Identidade nordestina e união em São Paulo" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-identidade-nordestina-e-uniao-em-sao-paulo); "Brasileiros na Hospedaria: Atrás da estação Roosevelt" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-atras-da-estacao-roosevelt); "Brasileiros na Hospedaria: Os caminhos passam por Minas" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-os-caminhos-passam-por-minas); "Brasileiros na Hospedaria: Cearenses em São Paulo no século XIX" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-cearenses-em-sao-paulo-no-seculo-xix); "Brasileiros na Hospedaria: Relatos orais - a voz dos que migraram" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-relatos-orais-a-voz-dos-que-migraram); "Brasileiros na Hospedaria: "O migrante quer morar" - a presença nordestina na luta por moradia na cidade de São Paulo" (https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/brasileiros-na-hospedaria-o-migrante-quer-morar-a-presenca-nordestina-na-luta-por-moradia-na-cidade-de-sao-paulo).