Blog
Compartilhe
Brasileiros na Hospedaria: Uma hospedaria para quem não tem casa
Bem-humorada, tagarela e poeta. Eis os atributos de Adelina da Conceição. Em outubro de 1926, os acolhidos na Hospedaria de Imigrantes do Brás ouviam, sem cessar, pelos corredores e pátio do edifício, a história interminável de seu casamento fracassado, que ela mesma narrava para quem quisesse ouvir.
Adelina fazia parte de um grupo de centenas de pessoas que, desde o início de agosto de 1926, era encaminhado para a Hospedaria. Mulheres, homens e crianças não eram migrantes estrangeiros recém-chegados, tampouco eram famílias que rumavam para o interior paulista em busca de um recomeço e trabalho na lavoura. Essas pessoas viviam nas ruas da cidade de São Paulo.
A intensificação dos fluxos migratórios internacionais em direção ao estado de São Paulo, especialmente a partir do final da década de 1880, transformou radicalmente e aceleradamente a capital paulista. O planejamento urbano da cidade não acompanhou adequadamente seu crescimento demográfico, o que gerou um grave problema de falta de moradias. Os altos preços dos aluguéis e a necessidade de residir próximo ao centro comercial e fabril – em razão também do transporte municipal raro e caro – fizeram com que as classes mais pobres da população em São Paulo procurassem alternativas. Disso resultou a proliferação de casas nas áreas das várzeas dos rios e das habitações populares e coletivas, como os cortiços.
As pessoas que moravam nessas localidades estavam mais suscetíveis às doenças e epidemias. Em alguns textos da série "Hospedaria em Quarentena" foram abordados temas como a relação dos cortiços com a Inspetoria Sanitária e de Higiene. Muitos deles eram demolidos ou lacrados após as inspeções. Não é difícil concluir que muitos indivíduos e famílias ficaram sem casa. A população vivendo nas ruas da capital se expandiu junto com a cidade. Em uma época que se procurava embelezar São Paulo, tendo como modelo as cidades europeias e, sendo também o próprio projeto migratório uma tentativa de embranquecimento da população, ou seja, de "civilizar" o Brasil, as autoridades públicas obviamente se incomodavam com a população de rua. Essa situação evidenciava as contradições de São Paulo.
Tendo isso em vista, em 1926, o Secretário de Justiça e Segurança Pública, Bento Bueno, e o Secretário da Agricultura, Gabriel Ribeiro dos Santos, resolveram transferir a população que vivia nas ruas de São Paulo para o edifício da Hospedaria de Imigrantes do Brás. O fato chamou a atenção do jornal Correio Paulistano, que enviou jornalistas para a Hospedaria em outubro de 1926. No dia 18 de outubro, foram publicadas uma matéria e duas fotos: "Caridade e Assistência Social: A ação conjugada dos Srs. Secretários da Justiça e da Agricultura, na repressão à mendicidade. A internação de mendigos na Hospedaria".
A polícia era a responsável por recolher as pessoas e levá-las até a Hospedaria. Entre o início de agosto e meados de outubro, cerca de 256 indivíduos (homens, mulheres, crianças, brasileiros e estrangeiros) foram acolhidos no edifício da imigração. Homens e mulheres foram acomodados em diferentes pavilhões do complexo, elas no andar superior e eles no térreo. Andavam uniformizados (blusa azul) e eram submetidos a um banho toda manhã. Ambos os grupos estavam submetidos a um regime disciplinar instituído pelo comandante do presídio da Hospedaria, o major Alípio Ferraz, que nomeou, entre os acolhidos, os responsáveis pela seção dos homens e das mulheres. No setor masculino, o chefe era o brasileiro Mario Sérgio Pacheco, um sargento reformado da Força Pública, que fora preso na Alameda Glete (Campos Elíseos), por se achar embriagado. No setor feminino, a chefe era Maria Rita dos Santos, que o jornal define como cabocla.
Por meio dessa reportagem, conhecemos a história do português Manuel Avelino de Freitas, um "falso mendigo" que pedia esmolas na rua da Consolação fingindo não ter um dos braços (colocava o braço direito de uma maneira jeitosa dentro da manga do paletó). Manuel estava indignado com a polícia, afinal atrapalharam seu negócio rentável. Em contrapartida, prometeu aos jornalistas que ia se regenerar se fosse posto em liberdade. Uma senhora portuguesa, Maria Neves Duarte, viúva do empregado da Companhia Light, Manuel Vaz dos Santos, compartilhou, em lágrimas, o desprezo dos filhos que estavam na capital e em Santos. Ela foi posta em uma cama melhor e fez um apelo para que seus parentes não a deixassem no esquecimento. Descobrimos, também, a história de Emygdio de Assumpção, um baiano que vivia em Araraquara e havia se mudado recentemente para a capital. Emygdio era cego e foi preso com uma quantidade específica de dinheiro, que provavelmente não soube explicar a origem. Relatou que se valia da caridade das pessoas por não poder mais exercer a sua profissão de marmorista.
Esses fatos nos revelam um pouco do perfil da população que vivia nas ruas de São Paulo na década de 1920. A falta de moradia atingia a todos: brasileiros, estrangeiros, homens, mulheres, crianças, jovens e adultos. A Hospedaria do Brás, construída com o objetivo de acolher pessoas, se mostrou, naturalmente, um lugar propício para receber aqueles que não tinham casa, a partir de 1926. A permanência deles no edifício não era definitiva; podiam sair caso algum parente ou conhecido assinasse um termo de responsabilidade, comprometendo-se a não os abandonar. Para algumas dezenas de indivíduos sabemos que isso ocorreu – quando os jornalistas do Correio Paulistano visitaram a Hospedaria existiam somente 79 acolhidos.
Por fim, voltamos à Adelina, nossa personagem do início do texto. A poeta, que também foi entrevistada, disse que não estava malsatisfeita com o tratamento recebido; porém, afirmou, sabiamente: "só não se pode acostumar privada do maior bem, que é a liberdade". E encerrou declamando um poema:
"Tenho fome, tenho sede;
Não é de pão, nem de vinho;
Tenho fome de um abraço;
Tenho sede de um beijinho.
Você diz que me quer muito;
Isso de querer é engano;
Você corta minha vida;
Como a tesoura ao pano.
Quando eu era solteira;
Usava fitas e laços;
Agora que sou casada;
Trago meus filhos nos braços.
Quando eu era solteira;
Usava sapato branco;
Agora que sou casada;
Nem chinelo nem tamanco".
Foto da chamada: dormitórios da Hospedaria de Imigrantes do Brás.