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Parte 1: Como podemos conceituar os deslocamentos indígenas?
Marci Jean Pereira Santana - Analista de Pesquisa
Introdução
O Museu da Imigração vem nos anos recentes, entendendo de forma mais complexa a diversidade dos processos migratórios, tanto do passado quanto do presente, no Brasil, especialmente em São Paulo. Nesta linha, baseada em um novo Plano Museológico [1], a instituição começa a questionar a centralidade de uma migração histórica, mais conhecido na acepção convencional de imigração em São Paulo, que por sua vez, seriam as migrações vindas de outros países que marcam a criação da Hospedaria de Imigrantes do Brás. Assim a instituição inicia ações pautadas em outros processos migratórios, abrangendo outras histórias sobre deslocamentos. Algumas dessas ações foram: aproximação das comunidades migrantes recentes – como exemplo dessa atuação, é possível considerar o trabalho junto a Copa dos Refugiados e Imigrantes [2], construção da memória política institucional - Conselho Municipal de Imigrantes [3], acompanhamento da luta política realizada por esses sujeitos - exposição Mulheres em Movimento [4], além de outras. No campo dos projetos de História Oral, um dos acervos basilares da instituição, foram criados projetos relacionados as ações citadas anteriormente, e galgando uma maior pluralidade de narrativas, foram também criados projetos de História Oral relativos as Migrações Internas [5] e aos Deslocamentos Indígenas e Negros em São Paulo [6]. Algumas dessas ações já foram detalhadas em outras publicações do Blog, por isso neste texto, tratarei especificamente dos Deslocamentos Indígenas.
O que me leva a escrever especificamente sobre os Deslocamentos Indígenas, foram algumas “provações” que me cruzaram enquanto pesquisadora no Museu da Imigração.
Provocações
A primeira “provocação”, ou atravessamento se quisermos, foi a realização de uma entrevista de História Oral para o projeto Deslocamentos Indígenas e Negros em São Paulo, focada no eixo Deslocamentos Indígenas. A referida entrevista ocorreu com Poty Poran Turiba Carlos na Terra Indígena do Jaraguá. A transcrição da entrevista se encontra disponível no BnWeb do Museu e vocês podem conferir caso tenham curiosidade [7], aqui me deterei ao trecho que coloco abaixo:
[...] nós, Guarani Mbya, até hoje a gente ainda, o que vocês chamam de nômades, a gente não nos consideramos nômades, porque a gente considera o nosso território, nosso território tradicional, ele vem lá de baixo, Paraguai, Argentina, Bolívia, aí pega Brasil, do Rio Grande do Sul até o Espírito Santo, e um pouquinho do Mato Grosso, acho que é Mato Grosso do Sul, e aí todo esse território é o território Guarani Mbya. E quando a gente muda de um território para outro a gente não considera como migração ou como nômade, a gente considera que a gente está no nosso território, na nossa terra. Então, assim, há uma movimentação muito grande entre os Guaranis Mbya, até hoje ainda há uma movimentação muito grande [...] [8]
Podemos encontrar o reflexo da fala de Poran na figura abaixo, extraída do Caderno-Mapa Guarany Continental [9].

Segundo informações da Equipe Mapa Guarani Continental, responsável pelo Caderno, “São mais de 280.000 pessoas, unidas por uma língua e cultura comuns, distribuídas em 1.416 comunidades, aldeias, bairros urbanos ou núcleos familiares, desde o litoral do Atlântico até a região pré andina.” [10]. Por sua vez, a Equipe ressoa a fala de Poran ao explicar que:
Os Guarani são povos com alta mobilidade, mas isto não quer dizer que são nômades sem residência fixa; de fato, vivem em aldeias de diversos tamanhos e são bons agricultores. Contatados pelos invasores europeus desde 1505, os Guarani manifestavam uma grande unidade linguística e cultural. Com muita propriedade, lhes deram o nome genérico de Guarani, como haviam sido conhecidos pelos primeiros europeus que chegaram à costa do Brasil e do Rio da Prata. [11]
Essa alta mobilidade fez com que os Guarani ocupassem territórios em uma ampla região da América do Sul, com sucessivas movimentações ao longo do tempo [12]. Nos dias de hoje, os Guarani formam grande grupos socioculturais com diferentes maneiras de falar o idioma Guarani [13]. Essa divisão sociocultural dos grupos está presente na fala de Poran quando ela diz “nós, Guarani Mbya.” Neste sentido, o Caderno supracitado, também informa quais são esses grupos socioculturais Guarani, sendo portanto:
Mbyá (Argentina, Brasil e Paraguai) / Avá-Guaraní (Paraguai), conhecidos também como Ñandeva, Guaraní ou Chiripá (Brasil e Argentina) / Paĩ-Tavyterã (Paraguai), conhecidos como Kaiowá (Brasil) / Ava-Guaraní y Isoseño (Bolívia e Argentina), conhecidos como Guarani Ocidental (Paraguai), e também como Chiriguanos ou Chahuancos (Argentina) /
Gwarayú (Bolívia); Sirionó, Mbía ou Yuki (Bolívia); Guarasug’we (Bolívia), Tapieté ou Guaraní-Ñandeva (Bolívia, Argentina e Paraguai); Aché (Paraguai) [14]
Os motivos para os deslocamentos dos povos Guarani, podem ser encarados como um caminhar em direção a uma “terra-sem-mal” [15].
São males, para os Guarani, uma terra esgotada para a agricultura, uma paisagem desértica, um campo sem árvores ou, na atualidade, a produção de gado e as monoculturas da soja, pinus ou cana de açúcar, que ameaçam suas vidas e seus territórios.
É também “um mal” as muitas doenças e mortes por fome e epidemias; os desentendimentos, desordem e conflitos sociais e políticos entre os membros e famílias da comunidade. Mas, um dos maiores males que os Guarani têm tido que suportar é a invasão e destruição de sua terra, a ameaça contra seu modo de ser, a expulsão, a discriminação e o desprezo que vieram com a chegada de “outros”, dos colonos e dos fazendeiros, sojicultores, usineiros e petroleiros. [16]
Essa mobilidade Guarani encontra resguardo no guarani reko, que por sua vez seria “um modo de ser e de proceder com características próprias.” [17]. Assim, “Todo o território Guarani, o solo em que pisam, é um tekohá, o lugar físico, a terra e o espaço geográfico onde estas populações indígenas são o que são, onde existem.” [18]. Cabendo ressaltar que:
“O território dos Guarani – guarani retã - também é anterior à criação e à conformação dos atuais países e de suas fronteiras, de fato muito recentes. Esta pré-existência é reconhecida na Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, a Constituição da República do Paraguai, de 1992, a Constituição da Nação Argentina, de 1994, e a Constituição Nacional da Bolívia, de 2009.” [19]
Este último ponto é importante pois nos leva a nossa segunda provocação: um veto presidencial na Lei de Imigração - que substitui o Estatuto do Estrangeiro. No projeto de lei, do que viria a ser a Lei nº 13.445, de 24 de Maio de 2017, houveram diversos vetos do Presidente da República, na época Michel Temer. Entre eles houve o veto do segundo parágrafo do artigo primeiro. O referido parágrafo dizia: “§ 2º São plenamente garantidos os direitos originários dos povos indígenas e das populações tradicionais, em especial o direito à livre circulação em terras tradicionalmente ocupadas.” [20]. Nas razões dos vetos, o Presidente da República argumentou que:
O dispositivo afronta os artigos 1º, I; 20, § 2º ; e 231 da Constituição da República, que impõem a defesa do território nacional como elemento de soberania, pela via da atuação das instituições brasileiras nos pontos de fronteira, no controle da entrada e saída de índios e não índios e a competência da União de demarcar as terras tradicionalmente ocupadas, proteger e fazer respeitar os bens dos índios brasileiros. [21]
Os artigos citados no veto presidencial, referem-se a tópicos que atestam a soberania da União, o poder desta em legislar sobre o território nacional - inclusive em território indígena, e possibilidades que a União guarda para si de intervir nestes territórios. E um dos artigos define a faixa de fronteira como fundamental para soberania estatal, devendo essas ser reguladas por lei.
Vemos então um embate. As concepções Guarani sobre deslocamentos no Brasil não estão respaldadas, ou, para além disso, estão negadas diante do poder público brasileiro, mesmo sendo reconhecido constitucionalmente o direito originário deste povo e de outros povos indígenas. Essa situação nos leva a questionar: como as concepções de deslocamentos dos Guarani, ou de outros povos indígenas, podem ser pensadas frente ao poder público no Brasil e no mundo? Ou, o que resulta quando colocamos tais concepções, uma frente a outra?
Uma questão ontológica
Em um primeiro momento, as perguntas acima demandam uma reflexão ontológica. Mas o que seria isso? Este conceito está fortemente ligado a tradição filosófica ocidental e se constitui como o questionamento do porquê as coisas são como são, o que por sua vez, acaba se confundindo com o próprio fazer filosófico [22]. Há um crescimento das discussões entorno deste conceito, chegando inclusive na área da economia [23], e no campo antropológico, importante base para as discussões tratadas nessa série de texto, trabalhos de antropólogos como Roy Wagner, Marilyn Strathern, Bruno Latour e Eduardo Viveiros de Castro reverberam as discussões entorno do debate ontológico [24]. Poderíamos então dizer que a ontologia seria os princípios basilares de um grupo ou sujeito, que fundamenta sua cultura e agenda. Por exemplo, como vimos acima, os grupos socioculturais Guarani possuem uma ontologia marcada pelo guarani reko, um bem viver, compartilhado e marcado pela mobilidade, em um uso da terra que reforça essas características. Já, em generalização, para o Estado e para a população brasileira, as concepções ontológicas se dariam a partir da história pós-colonial e as suas consequências, que resultam em princípios basilares como: centralidade do trabalho, dos direitos sociais, a supremacia da nação e consequentemente da sua fronteira, entre outros. Esses são princípios que acabam por nos marcar enquanto sociedade e que está presente em todas as áreas da nossa vida.
Um ponto importante para pensarmos diferenças ontológicas, é observar de onde elas procedem. No caso brasileiro e da América Latina como um todo, as diferenças ontológicas se dão entre os povos que habitavam essas terras antes da colonização ou que foram trazidos para cá à força - escravizados africanos, e os colonizadores – população de origem européia, marcadamente portugueses e espanhóis. Tratando desta questão Aníbal Quijano nos diz:
No processo que levou a esse resultado, os colonizadores exerceram diversas operações que dão conta das condições que levaram à configuração de um novo universo de relações intersubjetivas de dominação entre a Europa e o europeu e as demais regiões e populações do mundo, às quais estavam sendo atribuídas, no mesmo processo, novas identidades geoculturais. Em primeiro lugar, expropriaram as populações colonizadas – entre seus descobrimentos culturais – aqueles que resultavam mais aptos para o desenvolvimento do capitalismo e em benefício do centro europeu. Em segundo lugar, reprimiram tanto como puderam, ou seja, em variáveis medidas de acordo com os casos, as formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus padrões de produção de sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de expressão e de objetivação da subjetividade. [...] Em terceiro lugar, forçaram – também em medidas variáveis em cada caso – os colonizados a aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo que fosse útil para a reprodução da dominação, seja no campo da atividade material, tecnológica, como da subjetiva, especialmente religiosa. É este o caso da religiosidade judaico-cristã. Todo esse acidentado processo implicou no longo prazo uma colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura. [25]
Para Quijano (2005) [26], os processos de colonização que se iniciam no século XV, com destaque para a colonização ocorrida nas Américas, marcam um padrão de poder global. Diferenciando o padrão de poder global atual dos padrões de poderes anteriores, o autor define:
Por outro lado, o atual, o que começou a formar-se com a América, tem em comum três elementos centrais que afetam a vida cotidiana da totalidade da população mundial: a colonialidade do poder, o capitalismo e o eurocentrismo. Claro que este padrão de poder, nem nenhum outro, pode implicar que a heterogeneidade histórico-estrutural tenha sido erradicada dentro de seus domínios. O que sua globalidade implica é um piso básico de práticas sociais comuns para todo o mundo, e uma esfera intersubjetiva que existe e atua como esfera central de orientação valorativa do conjunto. Por isso as instituições hegemônicas de cada âmbito de existência social, são universais para a população do mundo como modelos intersubjetivos. Assim, o Estado-nação, a família burguesa, a empresa, a racionalidade eurocêntrica. [27]
Percebemos então que a conformidade das fronteiras do Brasil e a própria concepção deste enquanto um Estado-nação, leva em conta uma racionalidade de base europeia, que negou os modos de existências culturais pré-coloniais. Cientes disto, o que podemos fazer?
Indicativo de discussões
Duas posturas podem ser adotadas frente a essa questão. Uma que mantenha a soberania suprema do Estado-nação ou uma que garanta os direitos plenos das populações indígenas. Nesse sentido, pretendo apresentar discussões pertinentes a essas duas posturas, assim, este primeiro texto que vocês lêem servirá como introdução a discussão, e outros dois textos que serão publicados ao longo do ano, tratando das duas posturas.
Pensando a primeira postura, assumirei a soberania suprema do Estado-nação brasileiro e dos Estados modernos, encarando como a agenda dos Direitos Humanos pode acolher as mobilidades indígenas. Já na segunda postura, discutirei mais a fundo a noção de diferença ontológica, apresentando argumentos a favor da garantia dos direitos plenos das populações indígenas, principalmente no cenário da América Latina.
Cabe ressaltar que por motivos didáticos que para a primeira postura usarei o termo “migração”, assumindo as fronteiras dos Estados-nações modernos, e que usarei o termo “mobilidade” se contrapondo a esta noção fronteiriça colonial.
Até!
Foto de abertura: avós tapuya - Adriane Dzúkayá Kariú, 2022. Adriane é educadora, artista visual e tatuadora. Pertencente ao povo Kariú Kariri/CE, vive e trabalha no Gama/DF e foi a selecionada do Programa de Residência Artística do Museu da Imigração edição 2023/2024.
Referências
[1] MUSEU da Imigração. Plano Museológico, 2020. Disponível em: <https://museudaimigracao.org.br/uploads/portal/gestao/transparencia/arquivos/museudaimigracao-planomuseologico-rev2022-final-24-02-2023-14-40.pdf>. Acesso em: 18 fev. de 2025.
[2] SANTOS, T. H.; SOUZA, L. D. ; ECCLISSI, M. V. V. . Não fique calado, é hora de gritar gol: a Copa dos Refugiados e Imigrantes em 2019. MigraMundo, 20 dez. 2019. Disponível em: <https://migramundo.com/nao-fique-calado-e-hora-de-gritar-gol-a-copa-dos-refugiados-e-imigrantes-em-2019/>. Acesso em: 18 de fev. de 2025.
[3] MUSEU da Imigração. Colecionando Histórias Orais: Conselheiros Extraordinários Imigrantes nos Conselhos Participativos Municipais. Museu da Imigração, 20 de ago. de 2020. Disponível em: <https://www.memorialdoimigrante.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/colecionando-historias-orais-conselheiros-extraordinarios-imigrantes-nos-conselhos-participativos-municipais>. Acesso em: 18 de fev. de 2025.
[4] MUSEU da Imigração. Mulheres em Movimento. Disponível em: <https://museudaimigracao.org.br/exposicoes/temporarias/mulheres-em-movimento>. Acesso em: 18 de fev. de 2025.
[5] SANTOS, Thiago H.. As histórias invisibilizadas e o novo projeto de coleta de História Oral "Migrações internas.” Museu da Imigração, 13 de abr. de 2023. Disponível em: <https://museudaimigracao.org.br/blog/bastidores/as-historias-invisibilizadas-e-o-novo-projeto-de-coleta-de-historia-oral-migracoes-internas>. Acesso em: 18 de fev. de 2025.
[6] SANTANA, Marci J. P.. Deslocamentos Indígenas e Negros: os primeiros entrevistados. Museu da Imigração, 17 de jul. de 2024. Disponível em: <https://museudaimigracao.org.br/blog/conhecendo-o-acervo/deslocamentos-indigenas-e-negros-os-primeiros-entrevistados>. Acesso em: 18 de fev. 2025.
[7] HARUO, Thiago; SANTANA, Marci Jean Pereira. História Oral - Poty Poran Turiba Carlos. Museu da Imigração, São Paulo, 21 de Agosto de 2023. Disponível em: <https://museudaimigracao.bnweb.org/scripts/bnweb/bnmapi.exe?router=upload/728>. Acesso em: 19 de fev. de 2025.
[8] Idem.
[9] EQUIPE Mapa Guarani Continental. Caderno Mapa Guarani Continental: povos Guarani na Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai. Equipe Mapa Guarani Continental - EMGC. Campo Grande, MS. Cimi, 2016.
[10] Idem.
[11] Idem.
[12] Idem.
[13] Idem.
[14] Idem.
[15] Idem.
[16] Idem.
[17] Idem.
[18] Idem.
[19] Idem.
[20] BRASIL. Mensagem nº 163, de 24 de Maio de 2017. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/Msg/VEP-163.htm>. Acesso em: 19 de fev. de 2025.
[21] Idem.
[22] HEBECHE, L. A.. Ontologia I. 2ª. ed. Florianópolis: EAD-UFSC, 2012. v. 1. 151p.
[23] SELL, Carlos Eduardo. A Ontologia Social Analítica: Por uma Interlocução com a Teoria Sociológica. DADOS - REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS JCR, v. 64, p. 1-33, 2021.
[24] Idem.
[25] QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 118-142.
[26] Idem.
[27] Idem.